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Maria Cristina Fernandes: a pandemia que influenciou a ascensão do nazismo

Muito interessante a resenha da colunista do Valor, publicada na quinta, 30/4, no caderno Eu&Fim de Semana do jornal, sobre o livro The Great Influenza. O texto de Fernandes vai na íntegra, abaixo.

O presidente americano Woodrow Wilson resistiu o quanto pôde à Primeira Guerra Mundial. “Não é um exército que se treina para a guerra, é uma nação”, dizia. Apenas se decidiu quando vieram à tona documentos revelando uma proposta alemã para que o México aderisse ao conflito em troca do apoio germânico à reconquista de territórios perdidos para os americanos. Já corria o ano de 1917. Wilson mirou no que viu e acertou no que não viu. A “gripe espanhola” dilacerou mais a nação - e matou mais soldados americanos - do que a guerra.
A doença teve início nos Estados Unidos e chegou na Europa por meio dos soldados americanos. Os médicos a chamavam pelo nome do bacilo presente nas pneumonias dos acometidos, “influenza”, mas a doença acabaria se popularizando com o nome do país que era um dos poucos a não censurar informações sobre sua disseminação. Quando Woodrow Wilson caiu doente, dias depois de ter chegado a Paris, em março de 1919, para negociar o acordo que imporia perdas e ganhos aos países em disputa, o contágio foi tratado como segredo de Estado. Os jornais espanhóis, porém, noticiaram até quando o seu rei, Afonso XII, foi atingido pela pandemia.
A doença já tinha dado a volta no mundo e chegava ao seu terceiro ciclo quando Wilson chegou a Paris. Naquele mês, a cidade registraria 1.517 mortos. A mulher, a filha e o braço direito do presidente americano haviam sido contagiados, bem como, num estágio leve, os primeiro-ministros francês, George Clemenceau, e britânico, Lloyd George. Wilson caiu doente uma semana depois.
Nele a doença se instalou de uma hora para outra com uma tosse tão persistente que o médico da Casa Branca suspeitou de envenenamento. Numa carta entregue ao chefe de gabinete de Wilson, em Washington, o médico do presidente disse que tinha passado ao seu lado a pior noite da vida, pelos espasmos de tosse e diarreia e pela febre de 39 graus. “Está em condições de saúde muito sérias”, resumiu. No quarto dia da doença, ele se sentou e quis retomar as negociações do quarto.
Até adoecer, Wilson se mantinha inflexível às exigências de Clemenceau, a quem chegou a chamar de “execrável”. O primeiro-ministro francês chegara a abandonar uma rodada de conversas depois de dizer que o presidente americano se mantinha, de maneira irredutível, numa postura pró-germânica. Depois do restabelecimento, seus auxiliares reportariam que seu raciocínio perdera agilidade e argúcia. Ele se cansava facilmente e passara a se preocupar com lateralidades como o uso do carro da comitiva oficial.
A principal mudança no comportamento de Wilson, porém, apareceria no resultado da conferência. O presidente americano passou a aceitar as demandas francesas para impor à Alemanha toda a responsabilidade por ter iniciado a guerra. Em “The Great Influenza”, livro que voltou recentemente à lista dos mais vendidos nos Estados Unidos, 16 anos depois de ter sido lançado, e que ganhará edição em português em maio, pela Intrínseca, o historiador John Barry passeia por todas as teses que se levantaram sobre a mudança no comportamento de Wilson -- de acidente vascular a colapso mental - para concluir que o presidente americano foi uma das vítimas dos distúrbios mentais que a medicina provaria estarem relacionados à maior pandemia já registrada na história.
Não há parâmetro atual de comparação para o comportamento de Wilson. Donald Trump sugeriu desinfetante contra a pandemia, e as intoxicações por ingestão de produtos de limpeza bateram recorde em Nova York, mas ninguém pode se dizer surpreendido pelas recomendações do presidente americano.
No Brasil, da mesma forma, ainda que os exames secretos do presidente confirmem positivo para a covid-19, as obras completas de Jair Bolsonaro - da Aman ao Planalto - não autorizam a conclusão de que teria sido a doença a responsável por sua presença em palanque golpista na fachada do quartel-general do Exército.
A única menção ao Brasil é o registro do contágio de 33% da população do Rio e da viagem ao país, para pesquisa de febre amarela, do cientista Paul Lewis, durante a qual, dez anos depois, um dos seus discípulos (Richard Shope) provaria que era um vírus, e não uma bactéria, a causa da doença.
Até chegar a Paris, Wilson dizia que a paz apenas seria duradoura se o acordo não tivesse vitoriosos. Depois da doença, o presidente americano impôs à Alemanha uma derrota tão humilhante e avassaladora que os historiadores convencionaram associar a conferência, bem como a ascensão do comunismo, ao início da escalada de Adolf Hitler.
Em outro livro, “M, o Filho do Século” (Intrínseca, 2020), Antonio Scurati também atribui à mudança no comportamento de Wilson a dura derrota imposta à Itália. Para milhões de camponeses pacíficos e ignorantes da realidade mundial, a perda da Dalmácia e de Fiume significou que os 600 mil mortos foram em vão. Foi na humilhação dos milhares de combatentes que miseráveis - e doentes - da guerra que germinou a semente do fascismo de Benito Mussolini.
Dos países mais desenvolvidos da época, a Itália foi, proporcionalmente, o mais afetado. A “gripe espanhola” matou 1% da população do país. A estimativa mais conservadora, feita em 1927, calculou 21 milhões de vítimas em todo mundo, numa população equivalente a um terço da atual, mas, nos anos 1940, o Prêmio Nobel Frank Macfarlane Burnet, que passou a vida estudando a doença, estimou a mortalidade entre 50 e 100 milhões.
A evolução da ciência desautoriza a projeção de estimativas semelhantes para a covid-19, mas o relato de Barry é tão rico em batalhas contra o isolamento social, caça a médicos e enfermeiras, superlotação de hospitais, enterros em valas comuns e xenofobia, que nem parece ter se passado um século. Nos Estados Unidos, assim como acontece hoje, lá e cá, eram as autoridades locais que travavam a batalha contra aqueles que desprezavam a gravidade da doença.
Wilson se limitou a pedir ao comandante do Exército para que parasse de enviar tropas à Europa, uma vez que aumentaram os funerais no mar, mas não foi atendido. O médico responsável pelos embarques chegou a dizer que se tratava de uma gripezinha. Ainda que desconhecesse o vírus como agente causador, William Welch - que a pandemia tornaria o mais proeminente médico do país - já dizia, em suas primeiras manifestações, que uma das medidas vitais era evitar a aglomeração. Em Nova York, tossir ou espirrar sem cobrir a boca passou a ser punido com multa de U$ 500. No Arizona, até o aperto de mão se tornou ilegal.
A mudança de comportamento de Wilson em relação à conferência foi gritante, mas não dá para dizer que a gestão presidente americano pudesse ser caracterizada, até então, como pró-germânica. Se hoje o “vírus chinês” serviu para aumentar a sinofobia em todo mundo e no Brasil, em particular, com danosas consequências para a diplomacia e o agronegócio, na “gripe espanhola” o inimigo número 1, pelo menos nos Estados Unidos, eram os alemães. Como a pandemia surgiu no meio da guerra, alimentou-se a fantasia de que os alemães, que constituíam o mais populoso grupo étnico do país, haviam tratado de disseminá-lo nos Estados Unidos para enfraquecer as tropas americanas.
Com um ato presidencial em 1917, Wilson aumentou o cerco contra “traidores e espiões”. Em Iowa, difundiu-se a percepção de que “90% dos professores de alemão são traidores”. Em Cleveland, um jornal chegou a trazer um anúncio em que dizia que todo alemão ou austríaco, a não ser com antigos laços de associação com a comunidade em que viviam, deveria ser tratado como espião. Em Illinois, a associação de advogados declarou que aqueles que aceitassem defendê-los deveriam ser tratados como impatrióticos.
No Alabama, um vendedor da farmacêutica alemã Bayer foi preso sob a suspeita de ser um agente secreto. Ele acabaria sendo solto, mas no dia seguinte ao registro de 759 mortes em Filadélfia, cidade em que morava e também uma das mais devastadas pela doença, seu corpo foi encontrado num quarto de hotel com os punhos e a garganta cortados. A polícia registrou suicídio.
Além de aderir à difamação contra os alemães, os jornais americanos foram afetados por novo ato presidencial, que passou a censurar e punir a divulgação de informações que prejudicassem o esforço de guerra do país. Quem se aventurava a romper o cerco da censura sobre a doença o fazia para minimizá-la.
Em outubro, nove meses depois dos primeiros casos no país, a “Review Press and Reporter”, de Nova York, fez sua primeira publicação, condenando o alarmismo: “O medo mata mais do que a doença, e os fracos e tímidos sucumbem antes”. O “Literary Digest”, um dos periódicos de maior circulação nos Estados Unidos, foi na mesma linha: “Medo é o nosso primeiro inimigo”. Anúncios como o do centenário Vick Vaporub prometiam alívio e reforçavam o noticiário: “É apenas a velha gripe mascarada sob um novo nome”.
Nem toda a imprensa americana cumpriu o papel de precursora da máquina de notícias falsas que se disseminou com o trumpismo e o bolsonarismo. O “Gunnison New Chronicle”, do Colorado, tomou a dianteira do esclarecimento.
As autoridades da cidade, entrocamento ferroviário na região, tomaram a decisão de isolá-la por completo. Os maquinistas avisavam aos passageiros que, quem desembarcasse, seria detido e posto em quarentena por cinco dias. E o jornal local advertiu: “Esta doença não é brincadeira para ser desprezada, mas uma terrível calamidade”.
O bom governo e a boa imprensa, num tempo em que a ciência ainda engatinhava, produziram um bom resultado: Gunnison escapou sem uma única morte.



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