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Dica da Semana: Paletó e eu: memórias do meu pai indígena, livro, Aparecida Vilaça


Entre o fundo o mar e o reino do céu 

“Ele morreu no interior de Rondônia e eu continuei aqui, tentando imaginar o seu corpo, os fios de barba brancos soltos no queixo, os braços fortes. Lembro de cada um desses detalhes com muita nitidez e não consigo imaginar nenhuma dessas partes sem vida. Elas se mexem, brilham, falam comigo.”

Em tom literário que não esbarra em academicismo nenhum, Aparecida Vilaça conta, em Paletó e eu, a sua vivência entre os indígenas Wari. Em especial a relação que vai tecendo com Paletó, um dos índios que conhece no Rio Negro e que acaba adotando a autora como filha.

O livro começa com a morte de Paletó, já com 85 anos e padecendo de Parkinson. Aparecida conta então um pouco do ritual de passagem dos Wari, que, enquanto a família do morto canta chorando, os outros da aldeia comem a sua carne, para que seus parentes não se lembrem dele, e assim, não sofram com a memória. O espírito do morto parte então para um mundo das águas, no fundo do mar. No caso de Paletó, ele é enterrado, já que foi cristianizado e acredita no reino dos céus. 

A partir desse episódio inicial, a autora relata, de forma sincera e pessoal, toda a sua vivência entre os Wari - e algumas histórias que Paletó lhe contou sobre a origem dessa etnia. Os tantos massacres que sofreram pelos brancos, a cristianização e os contos tradicionais dos Wari. Episódios de Paletó no Rio de Janeiro, visitando sua filha, nos fazem rir, ao mesmo tempo que refletimos sobre a nossa própria existência no mundo.

Aparecida tem a riqueza da experiência: passou muitos anos indo à aldeia e foi capaz de observar transformações potentes. Como, por exemplo, o dia em que entrou na casa de amigos Wari e viu fotografias de pessoas que já tinham morrido pregadas nas paredes. Pareceu estranho, já que os Wari comiam os próprios mortos para não os lembrarem, para que seu espírito não ficasse entre eles. Ou mesmo a mudança na alimentação, antes provida de caça, depois de macarrão, arroz e feijão. Mesmo com todas as mudanças, a autora não coloca seu julgamento no relato, escrevendo um texto bastante humano e delicado, carinhoso.

A relação entre Paletó e Aparecida é desenvolvida de maneira muito sincera e orgânica, nos abrindo caminhos para pensar o outro, a alteridade de novos jeitos - mais humanos. De forma envolvente e instigante, entramos em um outro universo, que nos abre possibilidades de vivências e olhar sobre o mundo bastante diferentes.  

Mais do que tudo, Paletó e eu é um relato de uma relação de afeto entre pessoas tão diferentes - na língua em que falam, no jeito como se vestem, na comida que comem, nas relações que estabelecem, no cotidiano de suas vidas. E, mesmo com todas as diferenças, nos prova que a forma que construímos o nosso olhar sobre o outro pode abrir muitas portas - ou fechá-las. (Por Teresa de Carvalho Magalhães em 24/01/2021)



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