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A ascensão da economia feminista

Quando tomar posse como secretária do Tesouro do governo Joe Biden, Janet Louise Yellen ocupará pela segunda vez em sua carreira um cargo nunca antes exercido por uma mulher: foi assim também ao tornar-se presidente do Federal Reserve (Fed), o banco central americano, em 2014, por indicação do presidente Barack Obama. A distinção conferida a Yellen não é casual. Biden procura montar um governo em dia com as questões de gênero. Saem ganhando as mulheres economistas de todo o mundo em sua luta pela conquista de espaço na profissão e na formulação de políticas públicas, por Cyro Andrade para o Valor Econômico, vale a leitura.

 

Não longe das sedes do Fed e do Departamento do Tesouro, em Washington, a economista búlgara Kristalina Georgieva, diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), é uma aliada importante. Ela tem o objetivo de influir sobre os governos dos 190 países-membros, para chegar à paridade de gêneros na diretoria-executiva da instituição (“board”). Ainda estão longe de suas expectativas os números do recente relatório do grupo de trabalho que conduz uma estratégia para aumentar a presença de mulheres. Entre os 24 diretores, apenas 13% são mulheres e, entre os eventuais substitutos, não mais que 11%.

Como também dizia Christine Lagarde, sua antecessora, Kristalina entende que homens e mulheres não são substitutos entre si, mas complementares na diversidade de suas perspectivas analíticas. “Quando andam juntos, tudo fica melhor”, ela afirmou recentemente.

A avaliação de Kristalina ganha relevância adicional pela forma como se refere à convivência paritária entre homens e mulheres, endossando considerações do relatório do grupo de trabalho: homens e mulheres têm, justamente por sua condição de gênero, peculiaridades de discernimento e inclinações próprias para pensar questões que lhes são propostas e recomendar soluções. Complementam-se na diferença.

Não será difícil encontrar comprovações até bem antigas de que mulheres são donas de uma energia própria na produção de conhecimento. O recém-publicado “Routledge Handbook of the History of Women’s Economic Thought”, de Kirsten Madden e Robert W. Dimand revela a amplitude e variedade de contribuições femininas na história do pensamento econômico.

São registros de análises, propostas de metodologia e políticas encontradas num grande arco temporal e geográfico, que vem da segunda metade do século XVIII e chega ao começo do XXI, passando por todos os continentes, em percursos de intervenção intelectual frequentemente mesclada de militância.

Outros dois livros de publicação recente exploram temática específica, que acentua a diversidade de que fala Kristalina: “A History of Feminist and Gender Economics”, de Giandomenica Becchio, e “Advanced Introduction to Feminist Economics”, de Joyce P. Jacobsen.

São livros, particularmente os de Giandomenica e Joyce, que mostram mulheres como agentes intelectuais, enfrentando restrições de ângulo duplo, constituídas de motivações culturais relativas a gênero, simplesmente, mas que também podem estar ligadas à própria temática que escolhem para suas pesquisas.

A economia feminista pode, então, ser entendida como uma cidadela intelectual em que mulheres economistas vivem a condição, muito particular, de pensarem e agirem, ao mesmo tempo, como sujeito e objeto - o que não ocorre com homens de modo tão incisivo. Mas também é, pelos assuntos de que se ocupa, uma fronteira de pensamento com viés heterodoxo, que confronta o saber dominante, ortodoxo por definição e conservador nas políticas que inspira - ao gosto de muitos economistas, independentemente de gênero.

Brena Paula Magno Fernandez, professora do departamento de economia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), trata dessas peculiaridades diferenciadoras no artigo “Economia Feminista: Metodologias, Problemas de Pesquisa e Propostas Teóricas em Prol da Igualdade de Gêneros”.

Ela explica nesse texto que “a teoria econômica tradicional estabelece uma separação bastante rígida entre tempo de trabalho e tempo de não trabalho, vale dizer, entre o tempo dedicado ao trabalho no mercado formal, que possui valor de troca e por isso recebe uma contrapartida financeira, e aquele tempo dedicado seja aos cuidados pessoais, da casa, da família ou ao ócio e ao lazer”.

A economia feminista, distintamente, busca tornar visível a contribuição das mulheres para a economia em pesquisas que consideram o trabalho de forma mais ampla, incluindo o trabalho informal, o trabalho doméstico não remunerado (“trabalho invisível”), a divisão sexual do trabalho na família, tudo com o objetivo, segundo Brena, de “integrar a reprodução como fundamental à nossa existência”.

Decorreria daí “a necessidade de revisão dos preceitos e conceitos da economia ortodoxa à luz das críticas da economia feminista e do princípio ético e moral da igualdade de gênero, considerando as esferas produtiva e reprodutiva e as relações existentes dentro delas e entre elas”.

Seja qual for a linha de trabalho escolhida, não é amena a realidade cotidiana em que os assuntos econômicos - incluídos os da agenda de trabalho de Kristalina e dos demais integrantes do “board” do FMI - e envolvem a participação de homens e mulheres. Há complementaridades e embates.

“A carreira de economista ainda é extremamente refratária à entrada de mulheres, e isso se percebe já nas salas de aula”, diz Brena. “Minhas turmas costumam ter entre 30% e 40% de moças, não mais do que isso. É a chamada segregação ocupacional por gênero, um dado real, seja nos cursos superiores, seja nas profissões socialmente reputadas como ‘masculinas’ ou ‘femininas’. Entrar em um ambiente masculino como é a carreira de economista e atuar nele diariamente é altamente desafiador para as mulheres.”

E pode ser uma opção a ser levada adiante por implicar o enfrentamento de desafios. Mas também poderão estar presentes fatores de subjetividade específica, relacionados à própria condição feminina, ela mesma tendo peso substancial nas escolhas de uma mulher economista - inclusive, quanto aos temas que tomará para pesquisa e estudo em sua carreira. Nada é obrigatório, mas haveria uma certa inclinação associada àquela simultaneidade de papéis de sujeito e objeto.

“[A condição feminina] pode influir muito”, afirma a economista Fernanda Cardoso, professora da Universidade Federal do ABC. “Mulheres tendem a estar mais atentas a questões de gênero, até porque vivem na pele as consequências da desigualdade, desde a divisão sexual do trabalho, historicamente estabelecida, até a desigualdade salarial e/ou dificuldade de acesso a cargos de poder e influência.” Por isso, “problemas que são invisíveis para homens constituem a rotina de mulheres e as levam a aprofundar a pesquisa, além de trazer novos olhares para outros temas que são tradicionalmente abordados - como a desigualdade salarial, por exemplo”.

A escolha é livre - da carreira, da linha de pensamento, da temática de pesquisa e mesmo do lugar de trabalho (na academia ou no mercado). Em qualquer caso, ser mulher tem consequências. Os resultados de levantamento realizado em novembro pela equipe do Research Papers in Economics (RePEc) são reveladores. Entre 60.843 autores de 167 países e territórios com trabalhos registrados na plataforma - um painel colaborativo de centenas de voluntários em 102 países, destinado à disseminação da pesquisa em economia e ciências relacionadas -, apenas 15.658, ou 25,7%, são mulheres. É uma constatação aberta a interpretações que o RePEc não faz, mas sugere.

Economistas latino-americanas somam 4,4% do total. As brasileiras são 1,3%. As europeias aparecem com 49% do total de “papers” registrados e as americanas, com 19,6%. Na distribuição por países, as brasileiras (119) são 15% entre 780 autores. As francesas são 32% de 3.547 autores; as alemãs, 25% de 3.415; as britânicas, também 25% (de 3.681 autores); as americanas são 22% de 11.20 autores.

Já está aí um sinal de diferença entre gêneros. O RePEc, porém, apenas registra. Não julga, não valida. Esse afunilamento, processo seletivo de primeira importância para o seguimento de uma carreira, é com os “journals”, as publicações que, supostamente, conferem selos de qualidade aos “papers” que lhes são apresentados. As economistas que conseguem passar pelo escrutínio dos críticos são vencedoras de batalhas tipicamente femininas: é voz corrente que as avaliações são muitas vezes tendenciosas, se não com inclinação para o desmerecimento explícito. Possíveis impactos no currículo das autoras serão dificilmente contornáveis.

A renomada revista “Nature Communications” publicou recentemente minucioso estudo a respeito dessa questão. É um artigo ainda sujeito a crítica, mas as ideias essenciais estão ali lançadas: artigos assinados por mulheres, inclusive em colaboração com homens, estão sujeitos a atribulações nas mesas dos críticos (“reviewers”).

Monica de Bolle, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics, em Washington, é taxativa: “Existe uma claríssima discriminação”. “Todas as grandes revistas científicas estão revendo a maneira como avaliam e estão tentando colocar mais mulheres entre os ‘reviewers’, exatamente porque essa crítica apareceu com força e é empiricamente comprovada. As mulheres, na área econômica, têm muito mais dificuldade de emplacar um ‘paper’ num grande ‘journal’ do que os homens.”

Se o assunto for de economia feminista, então... “Com certeza. Existe um viés claro de demorar mais para publicar”, concorda Monica, que sabe das dificuldades enfrentadas por colegas acadêmicas. Brena Fernandez confirma: “É verdade, existe ainda muito preconceito com relação ao tema. Pelo menos em uma ocasião, tive a impressão muito clara de que um artigo meu sobre economia feminista havia sido rejeitado por pura antipatia do editor da revista. Isto porque os dois pareceres que ele próprio anexou ao e-mail de recusa eram claramente elogiosos e favoráveis à publicação.” Mas o artigo foi recusado por “não se adequar à linha editorial da revista”.

Foi uma situação “muito estranha”, ainda mais para quem, como Brena, está habituada a ter seus artigos sobre economia feminista difundidos no Brasil e no exterior. Contudo, ela diz que “há curiosidade e bastante interesse” pelo tema. “Acho que é uma questão de tempo até que o preconceito seja vencido e a economia feminista assuma o protagonismo que merece, dada a relevância das questões que aborda e dos problemas pragmáticos que se propõe resolver.”

Na UFSC, há progressos. No ano passado, foi criada uma disciplina específica sobre economia feminista, que será oferecida na graduação a partir do mês que vem. Também foi instituído o Núcleo de Estudos em Economia Feminista, registrado no CNPq e certificado. É o primeiro grupo de estudos especificamente voltado para a área no departamento de economia de uma universidade federal.

São questões universais. Nos EUA, no princípio dos anos 1990, Diana Strassmann, professora da Universidade Rice, estava cansada de ver a economia feminista não ser vista como parte legítima da pesquisa econômica e ter o acesso recusado em “journals” tradicionalistas. Assumiu, então, a liderança de um movimento pela mudança do modo como economistas (homens e mulheres) estabelecem suas prioridades de estudo e procuram influir na formulação de políticas econômicas, que é, afinal, do que se trata.

Primeiro, em 1990, conseguiu organizar uma seção para a área na Associação Americana de Economia e dois anos depois, com outras quatro economistas, fundou a Associação Internacional para Economia Feminista (Iaffe). Em 1994, o “Feminist Economics” nasceu como “journal” da Iaffe, quebrando a barreira institucional da publicação de “papers”, tida como condição essencial para a validação de pesquisas.

Juliane Furno, economista-chefe do Instituto para a Reforma das Relações Estado e Empresa (Iree), diz acreditar que pesquisas realizadas, ou mesmo orientadas (na pós-graduação), por mulheres são tratadas como tendo menos relevância científica “provavelmente porque os comitês de avaliação são compostos majoritariamente de homens, que, por uma questão histórica, consideram que a macroeconomia e a econometria têm mais relevância do que os estudos sobre desigualdade, pobreza, trabalho”. Ou seja, haveria um conhecimento “universal” neutro em relação às questões de gênero, de valor restrito a matérias específicas, como são aquelas frequentemente tomadas para objeto de pesquisa por mulheres.

Como contraponto, diz ainda Juliane, a economia feminista “faz a crítica epistemológica e paradigmática da forma como a economia tradicional neoclássica trata as ‘escolhas racionais’, problematizando a forma a-histórica com que homens e mulheres maximizariam o seu valor-utilidade, isso determinando a divisão sexual do trabalho”. Faz também “uma crítica ao restante da ciência econômica, mesmo a heterodoxa, que invisibiliza o trabalho doméstico não assalariado, não o considerando como trabalho, na medida em que não passa pela esfera da circulação mercantil, nem tem valor monetário”.

Mas Juliane se opõe ao que considera, no movimento feminista, um excesso de ênfase na valorização do conhecimento e da “representatividade” de gênero. Em sua opinião, acaba-se exaltando características que podem ser tomadas como “naturais” nas mulheres, como a sensibilidade, o altruísmo etc., que exigiriam, como uma espécie de contrapartida, a demonstração inequívoca de competência acadêmica.

“Apesar do avanço das mulheres na inserção profissional, ainda há um longo caminho a percorrer”, afirma Maria Alejandra Madi, professora aposentada do Instituto de Economia da Unicamp. “Em várias publicações e eventos tenho destacado a situação das mulheres no espaço econômico.” Ela relembra a organização do primeiro encontro de mulheres economistas, o Conselho Regional de Economia de São Paulo, em 2018.

“Foram discutidas questões culturais, de poder econômico e diferenças salariais, além de dilemas quanto às escolhas entre avanço na carreira profissional e exercício da maternidade. É um quadro complexo, que não só mina a autoconfiança das mulheres, mas retarda, e muitas vezes compromete de maneira deletéria, o seu avanço na carreira profissional.” E há o que Maria Alejandra chama de “desafios enfrentados pelas mulheres nas relações interpessoais no ambiente de trabalho”, como o machismo.

Nessa área de confronto - e nenhuma complementaridade -, Monica de Bolle tem histórias para contar. Depois de cinco anos no corpo técnico do FMI, ela voltou ao Brasil em 2005 e foi trabalhar no mercado financeiro, como economista-chefe da área internacional de um banco relevante no país.

“Foi um choque absoluto. De repente, me vi num ambiente repleto de homens, e muito machista, completamente diferente do FMI, onde os homens também eram maioria, poucas mulheres em posições mais altas, mas era um ambiente bastante respeitoso”, relembra Monica. “Aqui, mais de uma vez, tive que parar uma reunião, ameaçar sair, porque o que rolava de piada machista... Não dirigidas a mim, me respeitavam como economista, mas o desrespeito como mulher era óbvio. Me dei conta do que era ser mulher nesse meio. Vi com clareza que não há igualdade de gêneros nessa carreira, por mais que se esteja querendo mudar isso.”



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