Pular para o conteúdo principal

Vírus continuará conosco por anos e testará limites da globalização, diz economista James Meadway

 Enfermidades humanas moldaram as sociedades e as economias nos últimos séculos. Não será diferente após a covid-19, uma “doença do capitalismo”, que testa os limites da globalização como conhecemos, segundo o economista britânico James Meadway, autor do livro “Pandemic Capitalism”, publicado neste ano. Em entrevista ao Valor, ele fala em novo design dos espaços urbanos, no rearranjo das cadeias de suprimento e nos custos que a economia global enfrentará para conviver com a covid-19 pela próxima década. Para o plano geopolítico, diz, a pandemia pode significar uma mudança no jogo de poder, ao aumentar ainda mais a distância entre países ricos e pobres. Ex-conselheiro econômico do Partido Trabalhista, de oposição, atualmente ele integra o think tank The Progressive Policy, escreve Vivian Oswald, de Londres, para o Valor, em entrevista publicada dia 4/6. Íntegra abaixo.


Valor: A pandemia vem testando os limites do mundo globalizado. O que muda?

James Meadway: Ela acelerou tendências que já vinham sendo identificadas. Particularmente depois da crise de 2008, a trajetória de crescimento do comércio global, que se manteve em ritmo muito mais acelerado do que o da economia mundial nos 30 a 40 anos anteriores, mudou. O comércio internacional representa uma parcela da economia que encolheu desde então. Uma parte importante dele vai ser mais difícil, com muito menos voos e alguns tipos de serviços internacionais, além de custos muito maiores para determinados setores. Isso aponta para menos globalização.

Há ainda o impacto político. Houve sinais mais positivos, como o anúncio dos Estados Unidos de que vão apoiar a flexibilização das patentes sobre vacinas (da covid-19). Mas há também o nacionalismo da vacina, com diferentes países do Norte desenvolvido acumulando imunizantes para si, sem distribuir tanto para o resto do mundo. É um momento de ruptura para a globalização. A distribuição das vacinas não é só patente, é produção. Vacinas de RNA não são fáceis de se fabricar. É um mundo de novas tecnologias, tudo isso criado em um ano.

O mundo não está preparado para lidar com esse desafio logístico, que requer a coordenação entre diferentes países, companhias e todo o resto. Isso confirma que o vírus vai continuar por aí por um tempo.

Existe grande incentivo para que países individualmente cuidem de si em primeiro lugar. Vamos chegar ao limiar de um mundo dividido em duas camadas. Alguns lugares, mais protegidos da doença, vão erguer muros para se manter assim.

Valor: Isso não gera um custo alto inclusive para quem ergue os muros?

Meadway: Austrália e Nova Zelândia são dois países bem-sucedidos com a estratégia de acabar com a covid-19 que pagam um custo imenso. Fechar um país inteiro por mais de um ano causa prejuízos para o turismo, para a sua capacidade de organizar reuniões de negócios e outros tipos de interação para estimular a produtividade, como o intercâmbio de cientistas. Há custos cultural e social. Isolar-se do resto do mundo tem um preço.

Os dois países firmaram um acordo entre eles por se considerarem seguros para viagens e negócios. Isso pode acontecer com outros. Esse é um mecanismo que pode se disseminar e prejudicar o crescimento global, criar discriminação.

Valor: Podem ser novas barreiras para países como o Brasil e a Índia?

Meadway: Exatamente. Isso cria uma relação de poder entre os países ricos e os mais pobres. Você pode dar ajuda financeira, suspender restrições para viagens, oferecer vacinas ou não. Já vi isso sendo descrito como o imperialismo da vacina. Tem um elemento aí de imenso desequilíbrio de poder. Pode haver uma disputa entre nações de um mesmo nível, como o Reino Unido e a União Europeia, países desenvolvidos. Falo de algo bem diferente. Tudo bem, o Brasil e a Índia são economias bem grandes, mas, na hierarquia que todos sabemos que existe no globo, não estão lá no topo. Estão em algum lugar no meio. Por isso, podem ser pressionados.

Valor: As cadeias de suprimento global foram postas à prova. Faltaram medicamentos, vacinas, equipamentos médicos e semicondutores. Isso não aumenta a pressão?

Meadway: Os semicondutores estão por toda parte. Vimos fabricantes de automóveis que pararam de produzir porque não conseguiam chips para computadores de bordo. No mundo da internet e do 5G, em que os aparelhos estão conectados o tempo todo, você precisa de semicondutores para manter a expansão maciça no uso do processamento de dados. A outra questão, mais óbvia, é a dos produtos farmacêuticos. A vulnerabilidade das cadeias ficou mais evidente depois de 2008, quando teve início uma espécie de repatriação. Falar em “desglobalização” é um exagero. Mas é um recuo. A pandemia acelerou tudo isso. De repente, percebe-se que as cadeias de suprimento eram extremamente vulneráveis. Não foi só o vírus. Um navio de contêineres bloquear o canal de Suez por seis semanas é outro indicador dessa vulnerabilidade em um mundo globalizado.

Valor: A logística pandêmica mostrou que não havia navios suficientes no mundo. Seringas foram transportadas de avião. O transporte, nesse caso, saiu muito mais caro do que o custo delas próprias

Meadway: Há trens com mercadorias que saem da China e chegam ao Leste de Londres. É um movimento que foge do transporte marítimo e suas vulnerabilidades. A pandemia ajudou a entender um processo em curso. Introduziu outro grande incentivo. O vírus não vai desaparecer tão cedo. Várias atividades vão ficar mais caras, mais difíceis do que antes. Isso vai se somando. É custo alto para as empresas.

Valor: Será uma espécie de inflação pós-pandemia?

Meadway: Existe um debate entre os economistas. Uns veem um choque de demanda. A economia encolheu no ano passado porque todo mundo ficou em casa sem gastar muito dinheiro. Isso é uma parte. Mas há uma visão mais pessimista. Olivier Blanchard, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional, diz - e acho que ele tem certa razão - que, no longo prazo, as cadeias de suprimento vão estar sob pressão por causa desses custos. Se esse for o caso, é de esperar que a produtividade seja menor, e a inflação, um pouco mais alta. Esse deve ser o mundo onde viveremos.

Valor: Podemos dizer que o modelo de globalização está em debate?

Meadway: Acho que sim. A discussão sobre o afastamento do modelo neoliberal já estava em curso desde 2008. A pandemia também acelerou essa discussão. É impressionante o que se vê nos Estados Unidos, com a reviravolta conduzida pelo presidente Joe Biden, na contramão dessa visão de mundo. Internamente, conduziu mudanças dramáticas, com aumento gigantesco de despesas e a sinalização de que gastará ainda mais em pacotes de estímulo e infraestrutura, além de propostas para aumento dos direitos dos sindicatos, o que não se viu no país nos últimos 40 anos. Internacionalmente, apoiou a suspensão temporária das patentes para vacinas e a criação de um imposto sobre empresas com alíquota mínima global, o que pode ser o fim dos paraísos fiscais. Tudo isso é um forte golpe contra essa visão particular de globalização neoliberal que conhecemos há tanto tempo.

Valor: Quanto tempo conviveremos com a covid-19?

Meadway: Os modelos epidemiológicos apontam para um período de circulação do vírus de mais ou menos dez anos. Com sorte, as vacinas vão ser eficientes, bloquear as transmissões e acabar com os sintomas da doença, o que pode abreviar esse período. Mas não podemos nos fiar na sorte. Temos de pensar em ajustes de longo prazo. Isso já está acontecendo. Há uma forte migração para o teletrabalho, o que terá grande impacto sobre o funcionamento e desenho das cidades. As evidências apontam fortemente para o fato de que os danos ambientais e a mudança do clima vão gerar novas doenças no futuro. A agricultura intensiva cria as condições para a transmissão de doenças de animais para os seres humanos e, potencialmente, entre os seres humanos.

Valor: O senhor diz que o custo de erradicação total da covid-19 é alto e, por isso, deve se tornar uma doença endêmica. Por quê?

Meadway: Não vivemos num mundo que consiga lidar com esse tipo de problema de maneira coordenada internacionalmente. Não há mecanismos para isso, o que leva a um problema em que nações tomam carona nas medidas dos outros. Os países que estão fazendo um bom trabalho para erradicar a covid-19, com vacina e controle do vírus, pagam um preço alto por isso. Por que você vai fazer o mesmo, se custa caro, e o outro está resolvendo? Além disso, o nacionalismo da vacinação vai atrapalhar a imunização global. É mais provável que vire uma doença endêmica.

Valor: Por que o senhor considera a covid-19 uma doença do capitalismo?

Meadway: O vírus se adaptou muito bem neste mundo em que as pessoas vivem em cidades grandes densamente povoadas, passam tempo fechadas e viajam por toda parte. Se essa mesma doença surgisse cem anos atrás, não teria se disseminado assim. Para conter o impacto das futuras pandemias, vamos ter menos viagens globais do que agora, rever como produzimos alimentos, reduzir os impactos ambientais, com elementos da economia circular, reaproveitamento e reciclagem, e limitar as emissões de gases de efeito estufa.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe