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As aventuras de Zuenir Ventura com os grandes nomes da cultura brasileira

Começou por acaso a carreira de Zuenir Ventura, um dos mais longevos jornalistas em atuação no país, que mantém uma coluna publicada quinzenalmente no “O Globo”. Estudante de letras, ele trabalhava na “Tribuna da Imprensa” como arquivista e estava de passagem pela redação quando o dono do jornal, Carlos Lacerda, perguntou quem poderia escrever o obituário do escritor francês (nascido na Argélia) Albert Camus, que tinha falecido naquele dia. Ninguém respondeu. Zuenir, num gesto ousado que ele mesmo estranha, se ofereceu para a tarefa. Como seu texto foi aprovado pela direção, ele passou a repórter. Sorte dele, que construiu uma sólida carreira de jornalista e chefiou no Rio a redação de algumas das principais publicações brasileiras. Sorte também dos leitores, que ganharam textos elegantes, com o olhar arguto do repórter que presta atenção nos detalhes e no todo. Hoje, aos 90 anos, completados no dia 1º de junho, Zuenir está relançando um dos seus livros, em que ele conta, com graça e verve, histórias da sua convivência com grandes nomes da cultura brasileira, em especial os dois que mais admira - Glauber Rocha e Darcy Ribeiro. “Minhas histórias dos outros” (Companhia das Letras, R$ 59,90) ganhou nova edição com mais capítulos e se torna um antídoto contra a depressão e a monotonia nestes tempos de pandemia. O livro mais conhecido dele é “1968: o ano que não terminou”, escreve Célia de Gouvêa Franco no Valor, em texto publicado dia 4/6. Continua abaixo.


Ao longo de décadas, Zuenir se tornou próximo de Glauber e manteve a convivência mesmo quando o cineasta passou a ser muito criticado por outros intelectuais pelos elogios que fez, várias vezes, ao general Ernesto Geisel (presidente do Brasil entre 1974 e 1979 durante o regime militar) e seu principal ministro, Golbery do Couto e Silva. Foi num recado por escrito enviado a Zuenir, aliás, que Glauber pela primeira vez expressou sua admiração por Golbery: “um gênio, o mais alto da raça, ao lado do professor Darcy (Ribeiro, então no exílio)”. Zuenir também esteve com o cineasta nos seus últimos dias de vida.

A figura controversa de Glauber - “ele era muito engraçado, maluco, um gênio, que somatizava as crises do Brasil” - o atraiu tanto que Zuenir trabalhou por anos em pesquisas e entrevistas, inclusive em Portugal, para escrever a biografia dele. Quando o carro de Zuenir foi roubado, com as anotações que serviriam de base para o livro, o jornalista entendeu que esse era um sinal de que seria melhor não levar o projeto adiante. Um sinal “mandado” pelo baiano Glauber. Hoje ele diz que deveria, sim, ter escrito o livro.

Para Zuenir, comparável a Glauber entre os intelectuais brasileiros só o antropólogo transformado em político Darcy Ribeiro, outra grande figura que também parecia encarnar os problemas e a própria essência do que se chamaria de brasilidade. Engraçado e cheio de vitalidade, Darcy se destacava pelas suas tentativas de explicar por que o Brasil deu errado.

Os dois, Darcy e Zuenir, passaram juntos por muitas situações curiosas, até por um episódio em que o jornalista - acompanhado da sua mulher - salvou literalmente a vida do intelectual, ao encontrá-lo passando muito mal numa estação de trem em Paris, na volta dos três à cidade depois de participarem da tradicional feira de livros de Frankfurt. Uma história rocambolesca, felizmente com final feliz.

Ao Valor, numa entrevista por telefone, o jornalista, que mantém o isolamento social desde o início da pandemia e só sai para consultas médicas, disse que “sem nostalgia, ninguém se compara a esses dois”.

Por dever de ofício, como chefe no Rio das sucursais de revistas como “Visão” e “Veja”, ele teve o privilégio de entrevistar ou editar matérias com pessoas como o poeta maior Carlos Drummond de Andrade e o escritor Rubem Fonseca, os dois extremamente reticentes em falar à imprensa. Nos dois casos, retratados com detalhes engraçados em “Minha história dos outros”, Zuenir escapou por pouco de ter rejeitado as ofertas de matérias.

Na história mais curiosa, ele conta que recebeu, um dia, um telefonema de uma pessoa da Editora José Olympio, que publicava os livros de Drummond, dizendo que o escritor, já nos seus 75 anos, estava disposto a dar uma entrevista. Zuenir não acreditou porque achou que era um trote de algum outro jornalista, já que lhe pareceu totalmente fora do propósito que de repente Drummond se dispusesse a falar, ainda mais para ele.

No segundo dia em que a representante da editora telefonou, com a mesma oferta, Zuenir resolveu, ainda bem, tirar a história a limpo e conseguiu uma longa conversa com o poeta. A segunda batalha que ele teve que vencer para publicar a entrevista foi convencer a chefia de “Veja”, em São Paulo, de que Drummond era importante embora vendesse relativamente poucos livros.

Zuenir não conheceu e entrevistou apenas intelectuais. No livro, conta casos saborosos envolvendo, por exemplo, políticos como João Goulart, às vésperas de assumir a Presidência do Brasil, em uma passagem por Paris, onde o jornalista até serviu de tradutor para ele. Mas os melhores momentos são os que retratam personalidades do mundo da cultura, como Nelson Rodrigues, Pedro Nava, Hélio Pellegrino e Manuel Bandeira - que foi professor de Zuenir na faculdade de letras. Repito: um livro ótimo para abafar um pouco a tristeza provocada por tantas mortes e o descaso com que o Brasil está sendo tratado.



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