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Trump seguirá causando problemas, diz Eric Posner, da Universidade de Chicago

O presidente eleito do Estados Unidos, o democrata Joe Biden, deve aproveitar os próximos dias para celebrar os resultados das urnas, porque os tempos que se avizinham serão difíceis. Essa é a previsão do professor da Escola de Direito da Universidade de Chicago Eric Posner, cujos livros “Mercados Radicais” (Portfolio) e “Last Resort” (sem tradução no Brasil) foram listados por “The Economist” e “Financial Times”, em 2018, como dois dos melhores lançamentos daquele ano. Em 2019, ele publicou “The Demagogue’s Playbook: The Battle for American Democracy from the Founders to Trump”, também ainda sem tradução em português. Na opinião do professor de 54 anos, Donald Trump não deve comparecer à cerimônia de posse de seu sucessor. Algo que só aconteceu nos primórdios da República americana, há mais de 200 anos. Para Posner, os próximos meses serão de tensão. Trump, lembra ele, é uma figura única na história dos Estados Unidos e comportou-se de forma inédita em várias ocasiões. Deve demorar a ceder, mas terá que sair, escreve Ricardo Lessa no Valor, em entrevista publicada dia 13/11 no Valor. Continua a seguir.


Valor: O senhor consegue imaginar Trump apertando a mão de Joe Biden e passando o poder pacificamente em frente ao Capitólio?

Eric Posner: Não acho que vá fazer isso. Trump é uma pessoa tão rude, que não consigo vê-lo apertando a mão de Biden. Nem comparecendo à posse. Mas há precedentes para esse comportamento. Na eleição de Thomas Jefferson (1743-1826), John Adams (1735-1826) perdeu a disputa e se recusou a comparecer à posse do adversário. Foi uma campanha muito tensa e amarga. Foi a primeira vez na história. Poderia ter sido a última, mas isso pode acontecer de novo.

Valor: O senhor acredita que o presidente eleito vá pressionar o governo brasileiro em questões como o desflorestamento e a democracia?

Posner: Sim, provavelmente. Mas, no momento, ele terá problemas mais urgentes. Creio que, por enquanto, Biden não terá um papel muito agressivo.

Valor: Quais os primeiros confrontos que já podemos antever para Biden?

Posner: Biden vai tentar reformar as leis de imigração e reforçar a regulação ambiental relativa à mudança climática. Ele pode tomar medidas usando os poderes existentes sem necessidade de aprovação do Congresso. Mas, nos anos recentes, a Suprema Corte tem mostrado crescente hostilidade diante desse uso do poder presidencial. Então, podemos ter conflito nessas áreas.

Valor: Joe Biden pode mexer na questão da reforma da estrutura policial, que tem sido alvo de manifestações?

Posner: Não. Polícia, nos Estados Unidos, é um problema local, para Estados e municípios. No máximo, ele pode encorajar o Departamento de Justiça a processar autoridades policiais por violar direitos civis. Mas esses processos levam muito tempo e podem ter efeitos limitados.

Valor: Senado e Câmara sairão divididos dessas eleições ou com pequena maioria republicana. Isso pode paralisar o governo Biden?

Posner: É uma preocupação real. Se os republicanos retiverem a maioria, é certamente possível e talvez provável que isso aconteça. Principalmente se ele não conseguir apoio de alguns republicanos. Nos últimos tempos, o comportamento do partido tem sido de não cooperação com os democratas. É possível que o governo fique paralisado.

Valor: Qual será então a mudança real?

Posner: Depende muito se os democratas e republicanos vão persuadir o Congresso a reforçar o sistema de saúde, mexer na estrutura policial, melhorar a burocracia. Não acho que vá acontecer nada muito radical. Nas relações exteriores, vai haver certamente mais cooperação no campo das iniciativas contra a mudança climática. A ala esquerda do Partido Democrata alarma muito os americanos. Biden vai ter um desafio de reconciliar as duas alas dos democratas e vai tentar ser moderado.

Valor: A derrota de Trump pode afetar políticos que seguem seu exemplo em outros países?

Posner:Pode enviar um sinal a políticos ambiciosos de que a demagogia não é um bom caminho. Mas podem ficar tentados a imitá-lo. No fim das contas, Trump foi muito bem-sucedido. Ele perdeu por pouco.

Valor: Como vê o argumento, bastante controverso, de que o povo não saberia votar? Esse argumento é usado também nos Estados Unidos?

Posner: É algo com que as pessoas se preocuparam nos Estados Unidos há muito tempo. Eu acho que as pessoas, educadas ou não, geralmente sabem o que lhes interessa, o que lhes prejudica. O que é bom para elas. O problema é que, mesmo nos Estados Unidos, elas não sabem muito sobre políticas governamentais, mesmo as mais educadas. É difícil para as pessoas avaliarem as políticas governamentais. E surge espaço para que as pessoas comuns sejam enganadas por demagogos. Não sei qual é a solução clara. Mas não é tirando das pessoas o direito de votar.

Valor: Na última fala de Trump como candidato, disse tantas mentiras que as TVs americanas o tiraram do ar. O presidente pode fazer isso?

Posner: É legal. Nos Estados Unidos temos muitas proteções da liberdade de expressão. Ele é o presidente. Não há crime em mentir ou dizer coisas erradas. Não é uma violação da lei.

Valor: Como candidato, ele poderia falar da sala de imprensa da Casa Branca?

Posner: É a primeira vez que isso acontece na história americana. É chocante. É mais uma questão de normas do que de leis. Trump está violando isso desde o início.

Valor: Nas eleições da semana passada houve moderação das “fake news” e da manipulação das mídias sociais?

Posner: Acredito que sim. Houve um forte sentimento de rejeição à interferência estrangeira nas eleições americanas. Muito dessa coisa digital não é muito visível. Mas parece que as empresas que controlam as mídias sociais e o FBI puderam colocar limites nessa atuação.

Valor: O senhor acha que o pico desse tipo de atividade foi em 2016?

Posner: Essa manipulação foi uma surpresa em 2016. As redes sociais eram uma coisa relativamente nova, tinham oito, nove anos. Nessas eleições houve algumas iniciativas por parte delas e do governo, e o problema foi enfrentando adequadamente.

Valor: O presidente eleito poderá mudar o número de juízes na Suprema Corte, atualmente nove membros e maioria conservadora, como se falou durante os debates eleitorais?

Posner: Ele pode, constitucionalmente. Se tiver maioria democrata no Senado e na Câmara. Teoricamente pode. Mas seria muito controvertido. E não sei se ele conseguiria apoio da maioria dos democratas para fazer isso. A Suprema Corte é relativamente popular nos Estados Unidos. Seria algo arriscado para Biden aumentar o número de juízes na Suprema Corte. Acho que ele não vai tentar fazer isso.

Valor: Em entrevista ao Valor, a professora Wendy Brown, da Universidade da Califórnia, previa que o presidente eleito se comportará como um “vovozão”, o senhor concorda?

Posner: Não estou certo. Acho que Biden vai tentar ser calmo, passar confiança, ser mais racional e unificador. Não vai atacar apoiadores de Trump. Não vai atacar grupos. Brancos ou ricos ou de classe média. Ele vai tentar ser tranquilizador. Se é nesse sentido, eu concordo. Mas, por outro lado, há quem duvide de que ele vá ser ambicioso ou passivo. Alguns acham que pode ser manipulado. Aí não concordo. Ele é bem experiente, muito preparado e conhece bem mais como a política funciona do que Trump, por exemplo. Sim, ele está ficando mais velho, e isso poderia afetar ou diminuir a energia que ele tem. Isso não sei. Neste momento, eu suspenderia qualquer julgamento.

Valor: Neste fim do mandato de Donald Trump foram lançados numerosos livros de assessores e ex-colaboradores sobre ele. Sempre extremamente negativos. Isso foi inédito?

Posner: Houve casos anteriormente de assessores de presidentes que escreveram com críticas a eles. Mas não em tal número, nem com tanta negatividade. Trump nunca deveria ter sido presidente. Ele é inadequado para o cargo. Essas pessoas que escreveram chegaram a essa conclusão. É uma coisa terrível, mas ele foi eleito. E talvez depois que ele deixe o cargo a magnitude do erro fique mais óbvia e seja aceita, mesmo por alguns de seus apoiadores.

Valor: É uma contradição, no país do Vale do Silício, do Google e da Microsoft, não haver votação eletrônica? No Brasil temos um sistema eleitoral eletrônico nacional centralizado, supervisionado por um tribunal independente.

Posner: Parece um excelente sistema. Gostaria que tivéssemos um desses aqui. Nosso sistema é determinado pelos Estados. Alguns têm algum tipo de sistema eletrônico, uns mais sofisticados que outros, mas outros não têm.

Valor: Mas o presidente brasileiro já colocou sistema sob suspeita.

Posner: Trump e Bolsonaro compartilham a mesma ideia. Eles estão no poder e levantam suspeitas sobre qualquer sistema eleitoral para ficar mais tempo no poder. Infelizmente é uma vulnerabilidade e todas as democracias precisam lidar com isso.

Valor: Depois de seguidas eleições com resultados diferentes do voto popular e o do Colégio Eleitoral, está na hora de mudar o sistema eleitoral americano?

Posner: Hoje há uma impressão generalizada de que esse sistema deve ser reformado. O problema é que é muito difícil mexer na Constituição americana. Vai precisar de uma emenda. E seria necessária uma supermaioria nas duas casas do Congresso para conseguir isso. Além disso, uma supermaioria dos Estados aprovar. Os republicanos sairiam prejudicados politicamente se o colégio eleitoral fosse reformado e nunca apoiariam isso. Acho que ficaremos empacados com isso durante algum tempo, o que é profundamente infeliz para a democracia.

Valor: Joe Biden poderia tomar a iniciativa para essa reforma?

Posner: Ele não terá poder político suficiente. Os Estados Unidos têm a Constituição mais difícil de emendar do mundo. E Biden não terá essa maioria esmagadora para reformá-la.

Valor: Quando acha que serão reconhecidos oficialmente os resultados das eleições?

Posner: Trump vai tentar contestar a eleição enquanto puder. É muito difícil que ganhe os processos. No fim, Biden será declarado vitorioso. Trump vai sair em janeiro. Mas suspeito que nunca vá admitir que perdeu uma eleição justa. Eu não vejo possibilidade de ele realmente conseguir ficar no cargo.

Valor: Qual é a sua previsão de quando isso será resolvido?

Posner: As próximas semanas vão ser de incerteza, melhor dizendo, tensão. O Diretório Eleitoral vai se reunir e eleger Biden presidente. Isso deve ocorrer na primeira metade de dezembro. Até lá, todo mundo já estará convencido de que Biden é o novo presidente. E mesmo sem reconhecer a derrota, Trump vai sair até 20 de janeiro. Vai sair dizendo que houve fraude, mas vai sair. Não tem como não sair. Acho que nem os republicanos, ninguém vai querer apoiar Trump. Que fique claro, ele perdeu a eleição.

Valor: Donald Trump pode sair do país, como prometeu durante a campanha?

Posner: Não acho. Vai haver um monte de investigações sobre seus problemas fiscais. Temos que esperar para ver. É bem imprevisível. Acho que Trump continuará sendo uma fonte de problemas por aqui. Não porque fará algo ilegal, mas vai continuar semeando confusões. Mandando tuítes aos seus apoiadores. A maioria dos ex-presidentes americanos desaparece completamente, seria bom que isso acontecesse com Trump também.

Valor: O senhor compararia esse momento da política com outros momentos da história americana, sem falar do conflito Jefferson-Adams?

Posner: É muito difícil. Trump tem sido único na política americana. Nenhum presidente na política americana foi como ele. Alguns presidentes menores, como Andrew Jonhson (1808-1975), que veio depois de Abraham Lincoln (1809-1865), talvez. Ele era um pouco como Trump, maldoso e agressivo, mas não tinha o apoio político que Trump tem. E acabou sofrendo impeachment do Congresso. Trump tem muita ressonância entre um grande número de americanos, embora minoria. Não lembro de nenhum presidente que tenha tido tantos apoiadores apaixonados e, ao mesmo tempo, tenha sido tão destrutivo e tão esquivo em relação a cumprir as regras democráticas apropriadas. Houve outros momentos na história americana com eleições muito tensas e consequências sérias. Em 1841, por exemplo, a disputa entre William Harrison (1773-1841) e John Tilden (1951-1940) acabou em uma eleição contestada. Teve muitas acusações de fraudes e precisou ser resolvida por negociação. Mas não é uma eleição que as pessoas lembram muito. Não estou seguro que seja um grande precedente. Mesmo na disputa entre Adams e Jefferson eram tempos diferentes. Num mundo muito diferente. De certa maneira, Trump parece um pouco com Richard Nixon (1913-1994), no que diz respeito ao abuso de poder presidencial, um pouco como Andrew Jackson (1829-1837), que era um tipo de demagogo e bem destrutivo em relação às instituições governamentais. Mas isso foi há tempos atrás, em condições muito distintas. Parte da razão pela qual há uma sensação de crise nessas eleições é que na era moderna, desde o início do século XX, quando as instituições se aprimoraram, não tivemos um presidente como Trump. Por isso é difícil saber o que vai acontecer nos próximos um ou dois meses. Tempos difíceis.




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