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Padura revela por que escolheu não sair de Cuba

A imagem do artista isolado é um lugar-comum que Leonardo Padura intensifica na coletânea de artigos “Água por Todos os Lados” (Boitempo Editorial, 292 págs., R$ 45). Nada mais isolado que o artista em uma ilha, por si só excluída pela situação política econômica. A primeira imagem que vem à mente do leitor é Cuba, cuja capital, Havana, foi onde o escritor nasceu em 1955 e de onde nunca desejou sair, como a contrariar muitos de seus colegas que se exilaram, como Reinaldo Arenas (1943-1990), Guillermo Cabrera Infante (1929-2005) e Severo Sarduy (1937-1993), escreve Luís Antônio Giron para o Valor, em matéria publicada dia 6/11. Continua a seguir.


Padura não arredou pé nem mesmo do bairro onde se criou, Arenillas. Optou pelo mesmo destino de clausura, angústia e sufocação que experimentaram José Lezama Lima (1910-1976), Alejo Carpentier (1904-1980), Virgilio Piñera (1912-1979) e tantos outros. Do poema “A Ilha em Peso”, do último, retirou o título do livro: “A maldita circunstância da água por todos os lados/ me obriga a sentar-me à mesa do café./ Se eu não pensasse na água que me rodeia como um câncer/ teria dormido a sono solto”. O ar boêmio dos versos não esconde a negatividade de Piñera, exilado na própria terra pela burocracia castrista. Uma insularidade simbólica e de fato.

Padura explora com elegância a “maldita circunstância” de viver em um regime fechado. Para tanto, transforma isso em paradoxo charmoso: um autor exilado no próprio país e, ao mesmo tempo, motivo de orgulho da cultura cubana atual. É uma espécie de dissidente doméstico que critica os erros e satiriza as lutas culturais pelas quais a ilha passou.

Evitando o confronto direto com as autoridades, ele mantém a integridade intelectual e a liberdade de expressão, até porque o regime foi obrigado a se liberalizar ao longo dos anos, ao ponto de, em 2011, conceder aos cidadãos o direito de ir e vir, e assim viajar e se exilar. Num curioso paradoxo, Padura não cedeu à tentação de morar no exterior - como na Espanha, onde tem cidadania - e assim consolidou a imagem de autor cosmopolita.

Ele explora a condição em 19 “ensaios e obsessões”, como diz o subtítulo da versão em espanhol, editados pela mulher, a jornalista e roteirista Lucía López Coll, divididos em três blocos: o isolamento do artista, a utilidade do romance e perspectivas da literatura cubana.

Tudo gira em torno dele próprio e da cidade natal. “Havana é meu mundo”, diz Padura ao Valor. “Sou um escritor, um homem de Havana. E escrevo sobre a cidade. Mas isso não quer dizer que eu seja prisioneiro dela. O mundo é grande, e as boas histórias podem estar em qualquer parte. Mas seguramente meus romances saem de Havana, Cuba, e mesmo que avancem por outros territórios geográficos ou urbanos, sempre voltam a Havana, a Cuba.”

Um exemplo de universalidade é a série de quatro romances policiais, intitulado “As Quatro Estações”, escrito entre 1991 e 1998, que deu origem a mais narrativas. Seu protagonista é o detetive havaneiro Mario Conde. Diferentemente do anti-herói do romance “noir” americano, onde foi parcialmente forjado, Conde é um investigador saudosista, apegado às tradições de sua cidade e nada afeito à violência.

É um tipo folclórico, dono de um sebo de livros no centro da cidade. Não se preocupa em vender. É irônico e desprovido de utopias, muito menos a socialista Seu traço marcante é investigar mistérios e enigmas facilmente decifráveis, como um pretexto para realizar excursões por territórios pouco explorados da história cultural.

Padura se beneficiou da fama internacional do gênero policial cubano, surgido no início dos anos 1970, e se projetou como autor de entretenimento. Ganhou adaptações de sucesso para o cinema e televisão e uma série na Netflix, “Quatro Estações em Havana” (2016), com roteiro adaptado por López Coll.

Mas o sucesso maior, que lhe deu reputação mundial, ocorreu em 2009, com a publicação do romance “O Homem que Amava os Cachorros”, certamente sua narrativa mais elaborada. Trata-se de uma ficção histórica sobre o militante comunista catalão Ramón Mercader (1931-1978), que, a mando de Josef Stálin (1878-1953) assassinou Leon Trótski (1879-1940) a golpes de picareta, em sua casa em Coyoacán, no México.

A coletânea reserva um bloco para os bastidores da realização do romance. Padura esmiúça a pesquisa e conta histórias pitorescas. Em 1977, por exemplo, topou com Mercader em uma praia em Havana, onde estava exilado, passeando seus dois cães da raça borzol, de origem russa, nada adaptados ao clima da ilha. Se a ideia era passar despercebido, seus cães estragaram o plano, pois chamaram tanto a atenção que Mercader foi obrigado a cedê-los para uma participação especial no filme “Los Sobrevivientes” (1979), do diretor Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996).

A seção mais interessante é a final, em que Padura investiga para que (e não por que) romances são escritos. Cita Gustave Flaubert (1821-1880), que, em carta à amiga George Sand (1804-1876), afirma que romances servem para revelar “a alma das coisas”, ou seja, atingir o âmago da condição humana, algo que nem a ciência nem a filosofia conseguem expor.

Padura abraça a missão. Segundo ele, a tarefa do escritor é “contemplar o mundo e interrogá-lo”. “Não é necessário dar respostas”, diz, “mas sim revelar que nos perguntamos sobre muitas coisas sobre nossas sociedade e que, em geral, essas perguntas expressam nossas inconformidades pessoais e sociais porque, ao fim e ao cabo, somos cidadãos como os demais, só que nos dedicamos a isto, a escrever e a deixar nossas perguntas por escrito.”

Mesmo com água por todos os lados, a situação geográfica não é um obstáculo a quem ama as palavras. De acordo com Padura, o escritor tem o dever de ser crítico com o que acontece a seu redor e estar conectado com o mundo.



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