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Instituições dos EUA enfraqueceram com Trump, segundo historiadora Jill Lepore

Como é possível que os Estados Unidos, nação criada sob a égide da liberdade, possa também ser fundada com base na escravidão? Como pode a liberdade buscada e conquistada por imigrantes europeus, sobretudo os britânicos em oposição à coroa inglesa, não tenha sido estendida aos imigrantes africanos, mesmo depois da independência, em 1776, e da Constituição que começa com a frase “We the People” (“Nós, o povo”)? Para a historiadora Jill Lepore, de 54 anos, professora da Universidade Harvard, a única maneira de justificar essas contradições seria plantando uma nova semente: a da ideologia de raça. Essa tese está em seu mais recente livro, “Estas Verdades: A História da Formação dos Estados Unidos” (Intrínseca, 1.072 páginas, trad.: André Czarnobai e Antenor Savoldi Jr.). “Essa semente levaria muito tempo para germinar e mais ainda para morrer”, afirma. Danilo Thomaz escreve uma ótima matéria sobre os EUA no Valor, publicada na sexta, 16/10, continua a seguir.


Redatora da “New Yorker” e autora do best-seller “A História Secreta da Mulher-Maravilha”, Jill Lepore revê em “Estas Verdades” a sociedade americana desde 1492. Ela questiona se a história do país comprova as premissas fundadoras da nação - são as “verdades” do título.

Em sua visão, a presença do racismo na sociedade americana se vê no longo período de escravidão (que só acabou em 1865, após quatro anos de Guerra Civil) e a falta de reconhecimento de cidadania plena aos negros libertos, o que só ocorreria nos anos 1960, com o movimento pelos direitos civis. Ainda assim, mesmo após o país ter sido governado por oito anos (2009 a 2017) por um presidente negro, Barack Obama, persistem desigualdades, como mostra o assassinato de George Floyd por um policial branco, em maio de 2020.

“Acredito que a maioria dos americanos que acompanham o assunto não vê o assassinato de George Floyd como um ponto fora da curva, mas como uma linha de continuidade da história americana”, diz Jill Lepore em entrevista ao Valor. A novidade, com o registro em vídeo e sua divulgação nas redes sociais, é a possibilidade de crimes como esse serem vistos pela população branca. “Você pode pensar que os dados sobre casos de brutalidade policial são suficientes para convencer, mas é preciso que haja um registro visual.”

Segundo Jill, a população negra, desde o século XIX, tem de mostrar comprovações da violência que sofre. Naquele tempo, os negros livres do Norte dos EUA tentavam convencer as pessoas brancas de sua região de que a escravidão era um exemplo de atrocidade. Foi necessário, para tanto, que escravizados que fugiram de suas fazendas narrassem suas histórias de maneira oral ou escrita. “Isso foi realmente de grande importância para convencer muitos brancos do Norte de que a escravidão era tão ruim quanto as pessoas diziam que era.”

A historiadora afirma acreditar que a morte de George Floyd repercutiu na disputa presidencial para além da escolha da senadora Kamala Harris, uma mulher negra, para ser candidata a vice-presidente na chapa do democrata Joe Biden. “Afeta a urgência com a qual tentam levar democratas que não são apoiadores entusiasmados de Joe Biden a irem votar.”

Para muitos analistas políticos dos Estados Unidos, a eleição do dia 3 deve ser a mais importante da história americana. Apesar das crises que acompanharam a democracia do país nesses 244 anos - como o assassinato de quatro presidentes em exercício -, em nenhum momento ritos e tradições foram colocados em xeque como agora.

“Quatro anos depois [da eleição de Trump], a situação parece muito mais perigosa [que em 2016]. Trump deixa claro que não acredita no processo democrático, que não prometerá aceitar o resultado eleitoral se perder, tem sugerido a seus apoiadores a irem armados aos locais de votação para intimidar eleitores. Essas coisas não fazem parte da memória das pessoas nos Estados Unidos. Nós não temos eleições onde as pessoas batem umas nas outras a caminho da votação”, afirma a historiadora. “Décadas e décadas atrás essa não era uma experiência comum para os americanos. O que é complicado para mim como historiadora é que isso parece ter acontecido de repente, mas é claro que não. Houve um real enfraquecimento das instituições.”

A historiadora vê também um enfraquecimento dos dois partidos hegemônicos do sistema americano, o Democrata e o Republicano, que, do início do século XIX em diante, tinham a função de conservar a estabilidade política do país - e protegê-lo de figuras autoritárias e populistas, que poderiam incitar uma tirania das massas, como temiam os fundadores dos EUA.

“É claro que os republicanos vão culpar os democratas [pela crise política], e os democratas vão culpar os republicanos. Eu tendo a crer que há mais culpa a ser colocada no cesto do Partido Republicano, mas os democratas falharam. Eles decidiram jogar o mesmo jogo.” Para Jill, no sistema político saudável, “quando você derrota seus inimigos políticos, você não quer jogá-los na cadeia, correto?”.

Ela lembra que “Prendam-na” [em referência à candidata democrata, Hillary Clinton] foi um dos slogans da campanha de Trump em 2016. “Ela era [para os republicanos] uma candidata tão ilegítima e corrupta que deveria estar na cadeia”, diz Jill. “[E agora] você ouve algo como ‘prendam-no’ por parte das pessoas da esquerda a respeito de Trump. Não é correto dizer que seus inimigos políticos deveriam estar na cadeia. Não é assim que a nação de um Estado liberal funciona.”

Embora tenha sido derrotado no voto popular, Trump venceu no Colégio Eleitoral. Nos Estados Unidos, o presidente é eleito de maneira indireta. Quem elege o presidente são os delegados estaduais que compõem o Colégio Eleitoral e não são obrigados pela Constituição a seguir o voto popular.

No entanto, a maior parte dos 50 Estados americanos e o distrito de Columbia - onde fica a capital, Washington D.C. - obrigam os delegados a votar no candidato eleito pelo povo. Com exceção de Nebraska e Maine, quem vence em um Estado leva todos os delegados daquele local. Cada Estado tem um determinado número de delegados a partir de seu número de representantes no Congresso.

Em 2016, parte dos democratas, diante da derrota no Colégio Eleitoral, contestou o sistema eleitoral instituído pela Constituição no século XVIII, exigindo uma reforma que tornasse mais equilibrada a representação dos Estados. A questão deve voltar à tona em 2020, diante do acirramento da disputa. Jill defende uma reforma no sistema.

“Uma maneira seria por uma emenda constitucional, o que é quase impossível”, ela afirma, em razão das dificuldades de se mexer na Constituição americana. Outro caminho, aponta, é o Pacto Interestadual pelo Voto Popular (National Popular Vote Interstate Compact), um acordo que, se firmado, determinaria que os delegados de cada Estado votariam não naquele candidato eleito em sua localidade, mas naquele que ganhasse nacionalmente. Essa é a reforma que a historiadora vê como mais factível no contexto americano.

“Há muitos Estados descontentes [com o Colégio Eleitoral]. Há sérios problemas de corrupção em nosso sistema. Você realmente precisaria ter muitas pessoas dispostas a assumir alguma postura política corajosa para se livrar disso”, afirma Jill Lepore.




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