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A corrida da incerteza à Casa Branca

Circunstâncias extraordinárias nas eleições americanas deste ano impedem qualquer prognóstico sobre quem estará na Casa Branca em 2021, mesmo com o favoritismo de Joe Biden, escreve Carlos Eduardo Lins da Silva no Valor, em matéria publicada dia 30/11 no Valor.  Vale a leitura, íntegra a seguir.


É grande a possibilidade de que o resultado da eleição presidencial americana desta terça-feira só venha a ser conhecido após alguns dias ou até semanas. Há precedentes. Em 2000, apenas em 12 de dezembro confirmou-se a vitória de George W. Bush sobre Al Gore, após decisão da Suprema Corte.

Para demora similar não ocorrer neste ano seria preciso que o favorito, Joe Biden, conseguisse vitórias acachapantes em número suficiente de Estados para passar com folga dos 270 votos no Colégio Eleitoral que garantem a eleição de um dos candidatos à Presidência. Em 2000, como em 2016, o eleito obteve menos votos populares do que seu adversário, mas venceu numa combinação de Estados que lhe garantiu o êxito no Colégio Eleitoral. O mesmo pode acontecer agora, como já havia ocorrido nos pleitos de 1824, 1876 e 1888.

Mas, desta vez, há risco adicional. O presidente Donald Trump tem se recusado a dizer que aceitará o resultado final caso seja derrotado. Ele e seus aliados poderão tentar, por meio de manobras legais e políticas, reverter o veredicto das urnas em alguns Estados. Neste dia 3 haverá 51 eleições simultâneas em cada um dos 50 Estados e no Distrito de Columbia (equivalente ao Distrito Federal brasileiro). Cada uma com regras definidas localmente. A rigor, as unidades da federação podem decidir de modo autônomo quem as representará no Colégio Eleitoral.

Pela tradição, o candidato que ganha na votação popular em cada Estado fica com os votos dos delegados daquele Estado ao Colégio Eleitoral (exceto nos pequenos Maine e Nebraska, que dividem os delegados por distritos eleitorais). Mas não há garantia na legislação de que as coisas transcorram dessa maneira. O clima atual de polarização política nos EUA é tão grande, e o comportamento de Trump é tão imprevisível, que ele pode tentar arriscar-se em uma aventura que dificilmente dará certo, mas poderá provocar período de grande tensão e até situações de violência.

As instituições americanas são fortes. A maioria dos cidadãos e dos políticos tem compromisso sólido com a democracia. Mas uma minoria radical é capaz de provocar transtornos de monta se resolver agir com esse objetivo. Uma só vez na história, em 1860, houve a recusa estruturada de uma grande parcela da sociedade americana em aceitar o resultado de uma eleição para presidente. Onze Estados do Sul rejeitaram a vitória de Abraham Lincoln (1809-1865), e isso levou à Guerra de Secessão.

Nada parecido acontecerá neste ano. Mas é possível haver confusão e incertezas durante a apuração dos votos populares e a validação dos delegados estaduais ao Colégio Eleitoral. Se for assim, uma consequência positiva talvez seja provocar discussão nacional sobre a conveniência de alterar esse sistema.

O direito a voto

A Constituição dos EUA não garante a ninguém o direito de votar. Ela determinou que os requisitos para uma pessoa poder ou não votar fossem estabelecidos pelos Estados, que eram 13 originalmente, em 1776, quando a independência da Inglaterra foi declarada pelas colônias americanas. Apenas quatro desses Estados deram a escravos libertados o direito ao voto. Em todos os demais, só homens brancos proprietários de terras o tinham. Emendas constitucionais a partir de 1870 estabeleceram que seria proibido negar o direito ao voto com base em raça ou cor (1870), gênero (1920), falta de pagamento de taxas (1964) e idade superior a 18 anos (1971).

Mas muitos Estados, em especial os do Sul do país, continuaram a estabelecer exigências para limitar o acesso de contingentes expressivos da população às urnas. Durante muito tempo, para votar o cidadão precisava provar que sabia ler ou pagar uma taxa ou demonstrar que não tinha dívidas com o Estado.

Algumas restrições subsistem até agora. Por exemplo, para prisioneiros e pessoas que tenham servido penas de prisão. Em dez Estados, cidadãos que cumpriram integralmente sentenças de prisão por determinados crimes não podem votar. Prisioneiros cumprindo pena podem votar em apenas três Estados.

De acordo com a ONG The Sentencing Project, cerca de 5,2 milhões de pessoas (2,3% dos cidadãos com direito a voto) não poderão votar neste ano por causa disso. A grande maioria delas é negra, latina ou pobre. Alguns Estados diminuem o número de locais de votação em bairros habitados majoritariamente por negros, latinos e pobres. Outros exigem mais do que um documento para o cidadão registrar-se como eleitor ou provas de residência por determinado período de tempo no distrito em que ele deseja votar.

Essas e outras regras são estabelecidas localmente por 10 mil jurisdições, que têm liberdade para decidir. São em parte responsáveis pelos baixos índices de comparecimento às urnas historicamente registrados nas eleições do país. E fazem parte da cultura de racismo sistêmico que ainda prevalece lá. Em 2020, regiões governadas pelo Partido Republicano, de Trump, têm se oposto a medidas para facilitar o voto por causa da pandemia, como a colocação de postos em diversos locais com caixas para o depósito das cédulas dos que querem votar antes do dia 

Milhões de eleitores têm se valido do voto pelo correio, prática que é adotada nos EUA desde o século XVIII. Neste ano, o coronavírus estimula muita gente a usar essa alternativa. O Correio, entidade do governo federal, passou por cortes orçamentários que podem atrasar a chegada das cédulas aos locais de apuração e impedir a contagem de centenas de milhares de votos. Por causa da covid-19, o processo de naturalização de novos cidadãos americanos está atrasado e cerca de 300 mil deles não poderão votar no dia 3. Para quase todos, o único passo que faltava era a cerimônia final de juramento. A maioria dos afetados por essas restrições a voto é formada por potenciais eleitores de Biden.

 

Mike Pence, vice-presidente dos EUA, em evento em Tallahassee, Flórida: em 2000, o Estado era dominado pelos republicanos, que influenciaram na vitória de Bush — Foto: Steve Cannon/AP

Estados-chave

O sistema do Colégio Eleitoral faz com que alguns Estados tenham importância preponderante na definição do vencedor. Há Estados que votam há décadas no candidato de um dos partidos: Califórnia, Oregon e Nova York, por exemplo, no Partido Democrata, de Biden; quase todos os do Sul, no Republicano, de Trump.

Mas há os que são chamados de “pêndulos”: em algumas eleições quem ganhou ali foi o democrata, em outras, o republicano. A surpreendente vitória de Donald Trump em 2016 aconteceu porque ele venceu, por diferenças pequeníssimas (menos de 2%, 107 mil votos no total) nos importantes Estados de Wisconsin, Michigan e Pensilvânia. Os três juntos têm 46 dos 538 votos do Colégio Eleitoral. O número de delegados dos Estados é atribuído proporcionalmente à população, mas nenhum pode ter menos de três votos no Colégio.

Em 2016, Trump ganhou num conjunto de Estados que lhe deram 306 votos no Colégio Eleitoral. Hillary Clinton, sua adversária, em Estados com 232 delegados ao Colégio. Para vencer a eleição, é preciso ter ao menos 270. Na votação popular, Hillary teve quase 2,9 milhões de votos a mais do que Trump.

Para se ter uma ideia da possibilidade de confusão do sistema, o resultado oficial final da votação no Colégio Eleitoral em 2016 foi de 304 votos para Trump e 227 para Hillary porque dois delegados do Colégio que deveriam votar em Trump e cinco que deveriam votar em Hillary não o fizeram.

Trinta e dois Estados obrigam os delegados a votar no candidato que ganhou a eleição popular ali. Mas 16 não impõem essa obrigação. Nesses, o delegado tem autonomia para votar em quem quiser. A história registra 165 casos de delegados “infiéis”. Nenhum deles alterou o resultado de quem foi eleito.

Mas, se em 2000, quando Bush recebeu 271 votos no Colégio (apenas um a mais do que o mínimo exigido), cinco delegados tivessem sido infiéis a ele como foram os de Hillary em 2016, Bush teria perdido o pleito. Na eleição de 2000, o Estado da Flórida teve 5.825.043 votos populares apurados. Bush teve 537 a mais do que Gore, que requisitou recontagem, iniciada em meio a polêmicas acaloradas sobre procedimentos.

A Suprema Corte dos EUA, após decisões conflitantes em cortes estaduais, resolveu barrar a recontagem porque seria impossível terminá-la dentro do prazo necessário para os delegados ao Colégio Eleitoral depositarem seus votos. Com isso, todos os 25 votos da Flórida no Colégio foram para Bush, e ele venceu.

Algo desse gênero pode acontecer neste ano em qualquer dos Estados onde, de acordo com as pesquisas de intenção de voto, a disputa entre Trump e Biden está muito apertada, inclusive Wisconsin, Michigan e Pensilvânia.

Em 2000, a Flórida era governada por Jeb Bush, irmão do candidato republicano. Os republicanos também tinham sólida maioria no Legislativo do Estado. Isso foi fator importante na batalha política e judicial travada entre Bush e Gore pelos votos contestados.

Atualmente, os republicanos controlam o Legislativo dos três Estados-chave de Wisconsin, Michigan e Pensilvânia, mas os seus governadores são do Partido Democrata, o que eleva ainda mais o potencial de confusão.

Legislativos estaduais

Além desses três, os republicanos de Trump têm maioria nos Legislativos de outros 26 Estados, num total de 29, os quais, somados, representam 300 dos 538 votos do Colégio Eleitoral. É conhecido o fato de que a campanha de Trump tem feito sondagens junto aos republicanos dos Legislativos desses Estados para que eles ajam, no caso de derrota de seu candidato, para virarem o resultado no Colégio.

Há abertura legal para isso. O Artigo II da Constituição diz: “Cada Estado nomeará, segundo a maneira ordenada pela sua legislatura, um número de eleitores igual ao número total de senadores e deputados a que tiver direito no Congresso”.

Nas primeiras eleições presidenciais dos EUA, em alguns Estados não houve votação popular: os Legislativos indicaram diretamente os delegados ao Colégio. Só em 1876 é que todos os Estados passaram a ter o voto dos cidadãos como determinador de quem seriam os delegados ao Colégio.

Mas a Suprema Corte, na sua decisão do caso Bush vs. Gore (tomada por cinco votos a quatro), afirmou que o Legislativo estadual “pode, se assim quiser, selecionar os delegados [ao Colégio] por si próprio” e “tomar de volta o poder de indicar os delegados”, mesmo que antes tenha permitido que essa decisão fosse feita por meio de voto popular.

A composição da Suprema Corte desde terça passada é de seis juízes muito conservadores (três indicados por Trump) e três de tendência mais liberal. Se qualquer decisão sobre a eleição vier a ser examinada por ela, é bastante provável que resolva a favor de Trump, como a de 2000 decidiu a favor de Bush. Isso explica a pressa com que os republicanos, que têm maioria no Senado, responsável por apreciar apontados para a Corte, agiram para aprovar o mais rapidamente possível a indicação de Trump do nome de Amy Coney Barrett para a vaga deixada na Corte com a morte de Ruth Bader Ginsburg.

Aliás, tanto Amy quanto o juiz Brett Kavanaugh (também indicado por Trump) e John Roberts, presidente da Corte, trabalharam como advogados a favor de Bush no caso da eleição de 2000. Além de três integrantes da Suprema Corte, Trump nomeou e o Senado confirmou as indicações de outros 217 juízes federais para tribunais de recursos e regionais (de um total de 870). Há ainda 35 juízes à espera da votação do Senado, que certamente será rápida e favorável.

Esse cenário indica que a eventual judicialização das eleições deve favorecer Trump. Isso já está ocorrendo. Oito casos eleitorais foram julgados neste ano em tribunais federais de recursos, todos a favor dos republicanos. Os Estados têm até o dia 8 de dezembro para resolver eventuais pendências sobre quem serão os seus delegados ao Colégio Eleitoral. Em 14 de dezembro, os delegados em cada Estado depositam seus votos, que serão abertos e contados em Washington no dia 6 de janeiro, diante do Congresso composto pelos vencedores das eleições legislativas que também acontecem nesta terça.

Se houver impugnações ou objeções quanto ao processo, caberá ao Congresso resolvê-las. Por isso, as eleições para a Câmara (onde agora os democratas têm a maioria) e o Senado (controlado pelos republicanos) são tão importantes. Na pouco provável situação de o voto no Colégio Eleitoral terminar empatado, quem elegerá o presidente será a Câmara. Mas não pelos votos individuais dos deputados, e sim por bancada: cada Estado terá direito a um único voto, decidido pelas bancadas. Atualmente, os republicanos têm a maioria em 26 bancadas e os democratas, em 23 (a da Pensilvânia está dividida).

Se houver um empate no Colégio Eleitoral e a atual composição das bancadas estaduais na Câmara se mantiver como está agora, Trump será reeleito. Apenas duas vezes (em 1801 e 1825) a eleição presidencial foi decidida pela Câmara. Por mais ansiedade que as incertezas sobre esta eleição possam provocar, não há dúvida sobre uma coisa: o atual mandato do presidente Trump terminará às 12h de 20 de janeiro de 2021.

Se não houver um vencedor definido até lá, o presidente da Câmara (a ser eleito pelos novos deputados em 3 de janeiro próximo) assumirá provisoriamente a Presidência até o Congresso escolher uma pessoa para ser presidente interino durante o tempo necessário para a solução do impasse eleitoral. Também pode ocorrer que, antes disso, uma ação movida em nível estadual chegue à Suprema Corte, e sua decisão confira a vitória a um dos candidatos.

A 20ª emenda à Constituição estipula que se o presidente eleito morrer entre a data do pleito e a da posse, o vice-presidente eleito assumirá e cumprirá todo o mandato do presidente. Isso nunca aconteceu na história.

2020 não é 2016 nem 2000

Embora os pleitos de 2000 e 2016 sirvam como referência para especular sobe o que pode acontecer neste ano caso haja resultado apertado como os daqueles, é claro que a situação não é idêntica a nenhum deles.

Em primeiro lugar porque não havia presidente tentando reeleger-se naqueles anos. O controle do aparato do governo federal é sempre um fator favorável a quem está no poder. Mas 9 dos 44 predecessores de Trump perderam a reeleição. O mais recente foi George H. Bush, derrotado por Bill Clinton em 1992.

Se por um lado estar no poder confere ao candidato as vantagens do cargo, por outro oferece aos eleitores a evidência de como foi seu desempenho no exercício do cargo. E, no caso de Trump, os resultados são ruins: mais de 225 mil mortes por covid-19; em torno de 26 milhões de pessoas sem trabalho; recessão na economia; tumulto político; suspeitas de conflitos de interesse e corrupção. Embora Trump continue posando como alguém de fora do sistema político, é difícil fazer colar essa imagem após ter exercido por quatro anos a Presidência.

Em segundo lugar porque nenhum presidente teve comportamento tão errático quanto Trump. Nestes quatro anos, ele deixou de observar diversos rituais da política americana. Já em 2016, disse que a eleição estava viciada contra ele e não aceitaria o resultado de uma derrota. Vitorioso, afirmou que houve fraude e não tinha tido menos votos que Hillary na eleição popular. Formou uma comissão para apurar essas supostas fraudes, mas ela se autodissolveu após ter concluído que não havia provas de ilegalidade que tivesse alterado o resultado. Seu próprio diretor do FBI, Christopher Wray, testemunhou que não houve, nem há, evidências de fraude nas eleições.

Agora, Trump faz declarações inflamatórias, conclama seus seguidores a irem aos locais de votação para “observar” a votação e denunciar possíveis ilicitudes, em atos que podem vir a ser de intimidação e podem causar conflitos.

Terceiro, o nível de adesão radical a Trump por alguns de seus apoiadores não tem precedentes. É especialmente perturbador o fato de entre eles haver vários que formam milícias armadas. Alguns estão presos por terem feito planos para sequestrar dois democratas governadores de Estados (Michigan e Virginia).

A Conferência Nacional dos Prefeitos dos EUA publicou manifesto no dia 20 para alertar a população sobre a possibilidade de tumultos às vésperas, no dia e na sequência das eleições. Muitas cidades estão tomando medidas para tentar prevenir-se. O país viveu um verão caótico, com conflitos sérios e saques em muitas cidades após manifestações de protesto pela violência policial contra pessoas negras.

Entre 24 de maio e 19 de setembro houve 12.607 demonstrações de rua no país. Mas, de acordo com Ore Koren, da Universidade de Indiana, especialista em violência política, o número de mortes foi relativamente baixo: 12, das quais 9 foram causadas por policiais.

Quarto: nunca houve número tão grande de votos enviados por correio, o que poderá esticar bastante o prazo até o fim da contagem e aumentar muito as chances de anulação e contestação de cédulas. Muitos eleitores estão votando pela primeira vez a distância. As regras em vários Estados são complicadas. Devem ocorrer erros em demasia, e isso pode afetar o resultado.

Quinto: em 2016, acusações de supostas ilegalidades cometidas por Hillary ressoaram alto na mídia e na opinião pública. Em 2020, as alegações contra Biden e seu filho Hunter de possíveis negócios escusos na Ucrânia só têm tido repercussão grande em plataformas de redes sociais.

Biden não é Hillary

A mais importante diferença em relação a quatro anos atrás é que Biden não é Hillary. Uma das peculiaridades do pleito de 2016 foi a de que os dois candidatos então tinham baixíssimos índices de apreciação pelos eleitores, de acordo com todas as pesquisas de opinião pública. Não é o caso atual. A insuspeita Fox News (rede de TV que apoia Trump) divulgou pesquisa nacional que mostra Biden com um índice positivo de favorabilidade de 16 pontos (57% o veem favoravelmente e 41% não), enquanto o presidente tem índice negativo de 10 pontos. Hillary tinha índice negativo de 12 pontos em 2016.

Biden está longe de ser carismático. Mas suas características de personalidade e temperamento fazem dele um líder muito menos sectário e polêmico do que a ex-secretária de Estado e primeira-dama. Ele tem feito o possível para reforçar sua imagem de quem tenta superar divergências, unificar adversários em torno de causas comuns. Aos 77 anos (fará 78 em 20 de novembro), não é visto como radical pela maioria dos americanos.

Sua estratégia para contrapor-se à agressividade brutal de Trump foi na maior parte do tempo ignorá-lo. Não se engajou em troca de ofensas pelas plataformas de redes sociais (as quais ele usa pouco), embora não tenha deixado de fazer críticas incisivas à gestão do presidente e a seu estilo de liderança. Por exemplo, em vez de ofender os apoiadores mais entusiasmados de Trump (chamados de “deploráveis” por Hillary na campanha de 2016), diz que representa todos os americanos, votem nele ou não: “Vou lhes dar esperança”.

Sua campanha pela candidatura do Partido Democrata também deixou menos cicatrizes do que as de Hillary em 2016, por ter sido, em comparação, pouco beligerante, inclusive devido à pandemia. A concorrente que lhe foi mais hostil, Kamala Harris, é agora sua companheira de chapa.

Hillary teve o apoio de Barack Obama, o líder mais popular entre os democratas. Mas Obama está muito mais ativo e presente na campanha de Biden do que esteve na dela. Inclusive por saber que Trump está destruindo o legado de sua administração e irá mais longe nessa tarefa se for reeleito. A campanha “sui generis” de 2020, devido à pandemia, favorece o estilo mais discreto, reservado, calmo, de Biden, que se recolhe com frequência à sua casa, faz poucos comícios e lida com plateias pequenas.

Depois dos quatro anos frenéticos sob Trump em período marcado pela tragédia do coronavírus e de casos de violência racial, muitos americanos devem estar ansiosos por um pouco de calma e estabilidade. A idade e o temperamento de Biden parecem induzir a isso. Ele tem preferência muito superior a Hillary em 2016 em grupos demográficos essenciais neste pleito: idosos, mulheres, brancos e católicos.

Os católicos são cerca de 20% dos eleitores americanos. Em 2016, 52% deles votaram em Trump e 44% em Hillary. É provável que Biden, que poderá ser o segundo católico a chegar à Presidência (o primeiro foi John Kennedy, em 1960), inverta esses números. O voto de pessoas com mais de 65 anos também pode mudar de lado em relação a 2016, quando Trump obteve sete pontos percentuais acima de Hillary nesse grupo etário. Mas a atitude do presidente nesta campanha, minimizando a pandemia e ridicularizando Biden por ser velho (embora Trump tenha 74 anos) diminui suas chances. Pesquisas mostram Biden dez pontos acima entre idosos.

Biden precisa melhorar sua efetividade entre negros (e Obama está tentando ajudá-lo) e latinos, que juntos somam cerca de 26% do eleitorado (13% cada um). Entre os negros, o desafio é fazer com que mais deles se disponham a votar. Biden está 80 pontos percentuais à frente de Trump nesse eleitorado (Hillary teve 92%), mas não há grande entusiasmo na comunidade, o que pode elevar o nível de abstenção. Entre os latinos, o trunfo de Trump são os evangélicos e os cubano-americanos, grupos em que Biden não tem grande prestígio.

Os homens brancos, que somam cerca de um terço do eleitorado, são a razão por que Trump ainda é tão poderoso nesta eleição. Biden tem mais apoio do que Hillary nesse grupo, mas nem tanto quanto Trump, que ainda conta, segundo pesquisas recentes, com 53% das preferências contra 41% para o democrata.

Em 2016, Trump recebeu 52% dos votos dados por homens de todas as etnias, e 41% dos das mulheres. Recentes pesquisas mostram Biden com vantagem de 16 pontos percentuais sobre Trump no eleitorado feminino. A importância das mulheres tem crescido muito na política americana, e elas têm tido papel de relevo na oposição a Trump.

Se esta fosse uma eleição comum, não seria difícil prever a vitória de Biden. Mas há tantas circunstâncias extraordinárias neste ano, que qualquer prognóstico é arriscado. Os indícios são favoráveis ao ex-vice-presidente. Há até chances de seu partido manter o controle da Câmara e conquistar o Senado, o que lhe daria a oportunidade de ter dois anos iniciais de grande fôlego. Se eleito, Biden será a pessoa mais idosa a assumir a Presidência dos EUA. É pouco provável que venha a tentar reeleger-se em 2024, com 82 anos.

Ele sabe que esta é a única oportunidade de registrar o seu nome na história como um personagem decisivo para o país e para o mundo.

Carlos Eduardo Lins da Silva é professor do Insper e global fellow do Woodrow Wilson Center




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