Pular para o conteúdo principal

Época: cientistas políticos discutem a televisão nas eleições

Uma boa entrevista dupla sobre o cenário eleitoral deste ano, publicada na edição desta semana da revista semanal da Globo, íntegra a seguir. 


SÉRGIO BRAGA, 54 anos, alagoano

O que faz e o que fez: cientista político, é professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisador associado do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital. Especialista em esfera política e uso de tecnologias digitais, tem mestrado e doutorado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

FELIPE BORBA, 45 anos, fluminense

O que faz e o que fez: professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), é especialista em campanha política, horário eleitoral e propaganda negativa. Tem doutorado em ciência política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e foi pesquisador visitante na Universidade da Califórnia em San Diego

Em especial nas eleições de 2018, vimos candidatos com maior tempo de TV com baixo desempenho nas urnas. A propaganda na TV deixou de ser decisiva na campanha eleitoral com a popularização da internet ou foi um movimento pontual da eleição passada?

SÉRGIO BRAGA As campanhas de TV no formato antigo, onde o eleitor ficava passivo defronte à TV consumindo conteúdos padronizados criados por marqueteiros profissionais, têm cada vez menos relevância. Longe de ser pontual, a última eleição foi o culminar de um longo processo que ocorria desde pelo menos 1998, quando os candidatos passaram a usar a internet no Brasil em escala relevante. Antes do (Jair) Bolsonaro, tivemos Marina Silva, (Gilberto) Kassab em São Paulo, (Fernando) Gabeira e Marcelo Freixo no Rio de Janeiro. Um vídeo sobre o aborto que viralizou em 2010, por exemplo, foi o que provocou a ida das eleições para o segundo turno, dentre inúmeros outros fenômenos que atestavam a progressiva perda de importância do formato tradicional de horário eleitoral gratuito, especialmente em eleições majoritárias. Entre (Fernando) Collor e Bolsonaro, em 2018, há toda uma história de uso da internet pelos candidatos nas eleições brasileiras. É uma tendência que deve se aprofundar nos próximos pleitos à medida que o eleitor se torna mais jovem e incluído digitalmente.

FELIPE BORBA A propaganda na TV pode ter perdido aquele protagonismo absoluto que tinha antes da popularização da internet, mas não quer dizer que ela tenha deixado de ser decisiva, por uma razão muito simples: assistir à televisão é um hábito muito presente entre os brasileiros. O smartphone não substitui a televisão como ela substituiu o rádio. Quando a televisão chegou, as pessoas deixaram de ter o rádio para passar a ter televisão. Mas a televisão e o smartphone convivem. Ninguém deixou de ter televisão porque tem telefone com internet. As duas coisas servem a propósitos diferentes em uma campanha, são complementares. Além disso, o horário eleitoral gratuito é feito de duas modalidades: aquela de blocos e as inserções, de 30 segundos, que foram recentemente ampliadas pela Justiça Eleitoral e aparecem na programação normal das emissoras. Essa inserção tem um impacto muito grande no eleitor porque você o pega desprevenido. Quando se fala da morte do horário eleitoral, se esquece que as inserções continuam fortes, têm alto impacto e estão aparecendo em maior quantidade.

O impacto da propaganda na TV muda na comparação entre eleição presidencial e municipal?


SB Na realidade, faltam estudos recentes mais sistemáticos sobre isso. Penso que nas eleições presidenciais o horário eleitoral tem uma importância maior, na medida em que é o centro difusor de uma estratégia discursiva e de produção de conteúdo que vão ser replicados nacionalmente, inclusive pelas mídias digitais. Nos municípios, penso que varia muito em função do IDH e do grau de inclusão digital da população. Uma pesquisa recente feita por Rosane Santana, da UFBA (Universidade Federal da Bahia), produziu vários achados relevantes sobre o assunto, mostrando que, numa capital importante como Salvador, o WhatsApp e o Facebook já são fontes importantes de informação sobre eleições, mesmo para a população de baixa renda.

FB Sim. Nem todas as cidades têm horário eleitoral gratuito (para eleições municipais). Na grande maioria, em mais de 90% das cidades brasileiras, não existe propaganda na televisão. Em algumas cidades, inclusive, passa a propaganda da cidade vizinha. Por isso, o horário eleitoral varia em seu efeito, ele tem mais importância nos grandes municípios, nas grandes capitais.

A internet afetou o tipo de conteúdo político adequado para a TV?

SB Completamente. A internet mudou por completo o conteúdo produzido para a TV, embora esta esteja longe de ter perdido relevância, evidentemente. Na TV, estão os profissionais mais preparados e que produzem conteúdo de qualidade com uma linguagem que é acessível a uma grande quantidade de pessoas. Entretanto, se estes conteúdos não forem postados e compartilhados nas mídias digitais, perdem completamente a relevância. A “tia da TV” virou hoje a “tia do zap”. Se não circular pelas redes, não se estabelece uma relação de confiança entre o conteúdo produzido e o receptor das mensagens. Estamos cada vez mais inseridos dentro de um “sistema híbrido”, como previu o pesquisador Andrew Chadwick, embora naturalmente as antigas mídias não tenham perdido relevância. Apenas perderam aquelas que não se adaptaram à nova realidade.

FB A linguagem do horário eleitoral evolui de ano em ano, não é estática. A propaganda de 2018 é completamente diferente da de 1989, quando era algo mais careta, com o candidato falando de frente para a câmera. A propaganda eleitoral foi se tornando mais dinâmica e, com a entrada das redes sociais, certamente os publicitários vão precisar tornar a linguagem da televisão mais atrativa para prender a atenção do eleitor. É o desafio dos marqueteiros.

O eleitor tende a dar mais credibilidade ao horário eleitoral na TV do que para o que lê nas redes sociais?

SB De forma alguma. Se isso ocorresse, talvez Bolsonaro e tantos outros governadores, senadores, deputados e até juízes não teriam sido eleitos ou nomeados para cargos públicos em sua esteira. O horário eleitoral cada vez mais se torna sinônimo de conteúdo pasteurizado, produzido por profissionais pagos a preço de ouro e que tende a criar uma imagem artificial do candidato. Se o candidato não construir uma relação de autenticidade e proximidade com o eleitor, a tendência é que ele perca credibilidade.

FB Diria que sim. Na televisão, o eleitor consegue vincular na propaganda eleitoral gratuita o candidato à mensagem. Ele vê quem está falando o quê, enquanto nas redes sociais ele recebe a mensagem sem saber da fonte. O horário eleitoral é altamente regulamentado, por exemplo, com direito de resposta. O eleitor sabe que o horário eleitoral gratuito é fiscalizado. Ele sabe que existe penalidade quando um candidato mente ou fala meia verdade, certeza que ele não tem na internet. Existe a dúvida sobre a veracidade do conteúdo que recebe na internet, uma dúvida que é menor na televisão.

De que forma a redução do tempo de campanha e as restrições para partidos menores acessarem seu tempo de rádio e TV afetam o horário eleitoral?

SB Aumenta ainda mais a importância da internet e das redes digitais. Quanto mais curto o tempo de campanha, mais importante se tornam as redes prévias construídas pelos candidatos, tanto no mundo “real”, por meio do contato com uma rede de prefeitos, lideranças comunitárias, vereadores, quanto num mundo “digital”.

FB É ruim para a democracia a redução brusca do horário eleitoral gratuito e o fenômeno dos candidatos com poucos segundos de tempo de televisão. Isso dificulta a discussão dos problemas da cidade. Como o candidato vai se apresentar e discutir suas propostas se tem cinco ou seis segundos? O que a legislação fez foi transformar todos os candidatos em Enéas. Os candidatos não têm como se comunicar adequadamente.




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe