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À espera da segunda onda do coronavírus na Europa

A pandemia do novo coronavírus roubou parte da personalidade da badalada Piazza, em frente a Covent Garden, o antigo mercado municipal transformado em centro de compras na capital britânica. Ali tinha início, em plena luz do dia, o burburinho da região conhecida como West End, reduto dos teatros e de um comércio que vai do alto luxo ao hippie, passando pelo descolado e engajado. As lojas hoje estão vazias. Já não é preciso atravessar as ruas estreitas das cercanias para desviar dos grandes grupos de turistas e locais — o que pode ser positivo em tempos de distanciamento social. Nem evitar as grandes aglomerações em torno de artistas de rua. A aparente calmaria revela a decadência de uma parcela da economia britânica que se prepara para a segunda onda de contaminações pela Covid-19. E ela já começou, com o número de novos casos subindo em progressão geométrica, escreve Vivian Oswald, de Londres, para a revista Época. Vale a leitura, íntegra a seguir.


Há um punhado de anos ganhando a vida a partir da interação com o público em Covent Garden, o mágico brasileiro Sérgio Barros ficou parado por sete meses. Como todos os 5 milhões de trabalhadores autônomos no Reino Unido (15% da mão de obra do país), Barros depende da ajuda do Estado para honrar as despesas da família neste momento. O governo vem pagando 70% do montante que essas pessoas costumam declarar como receita. O mágico voltou há algumas semanas para seu ponto de sempre, nas imediações da imensa loja da Apple. Mas as regras sanitárias em vigor não permitem a proximidade que tinha com o público. Sem saber se as restrições, que vão ficando semanalmente mais pesadas, terminarão em um novo lockdown, Barros tenta fazer caixa. Mas, com o movimento escasso, agora só se apresenta nos fins de semana.

O primeiro-ministro Boris Jonhson garante que está longe de seu desejo fechar a economia inteira novamente, embora reconheça que essa é uma possibilidade, caso todas as outras falhem. Sua resistência se explica em números. O Produto Interno Bruto (PIB, soma de bens e serviços produzidos no país) desabou 20,4% no segundo trimestre deste ano. O resultado se deveu sobretudo aos efeitos do primeiro confinamento, que começou em 23 de março e foi até o início de julho, mês em que, justamente pela flexibilização, foram registrados os primeiros sinais de recuperação. O premiê sabe que a economia continua operando em um ritmo muito abaixo do registrado até fevereiro. No entanto, é cada vez mais forte a sensação de que um segundo confinamento pode ser inevitável, como em Israel ou na Espanha. É o que pedem especialistas de fora e até do próprio governo.

A segunda onda não tem o efeito surpresa da primeira. Empresas e estabelecimentos comerciais pela Europa se consideram mais preparados para enfrentar o turbilhão. Pelo menos do ponto de vista sanitário. No lado financeiro, contudo, as incertezas são cada vez maiores. Sem a vacina, boa parte das instituições financeiras da City — o coração financeiro de Londres — decidiu deixar seus funcionários trabalhando de casa até o ano que vem. Muitas até se mudaram para economizar em aluguel neste bairro que tem um dos metros quadrados mais caros do mundo.

Quando os restaurantes de Vilnius, capital da Lituânia, puderam reabrir, mas mantendo o distanciamento entres clientes, Bernie ter Braak, dono do Cozy, no centro histórico, teve a ideia de bloquear parte das mesas com manequins. Com a ajuda de uma designer local, tentou afastar o baixo-astral de um estabelecimento vazio com roupas exclusivas. “Agora, colocamos painéis de acrílico entre as mesas para ficarem mais próximas. Aumentamos nossa capacidade de ocupação”, disse Braak. “A segunda onda parece ter começado. A clientela já está caindo. Por isso, estamos trabalhando no osso. Reduzimos o número de funcionários e estamos tentando fazer o melhor. O que vai acontecer no futuro próximo vai depender das restrições adicionais a serem adotadas. No caso de um segundo lockdown, temo que só a ajuda do governo possa nos socorrer”, disse.

Só que os governos europeus já gastaram centenas de bilhões em ajuda aos diversos segmentos econômicos. Por mais que a austeridade fiscal tenha ficado em banho-maria na crise sanitária, as autoridades admitem que já não há gordura para queimar. Na quarta-feira 7, a Escócia determinou o fechamento de bares e restaurantes nas regiões centrais. Em outros lugares do Reino Unido, o mesmo tem sido feito, assim como na França, onde as áreas estão classificadas por cores conforme o nível de risco de contaminação. Muitos estabelecimentos têm sido fechados simplesmente por terem registrado casos de Covid-19 entre os clientes. A Bélgica também determinou o fechamento de bares e restaurantes na região de Bruxelas.

Em Amersham, uma cidade no condado de Buckinghamshire, a 40 quilômetros de Londres, o The Grocer’s precisou se reinventar. O pequeno café que servia refeições vegetarianas e oferecia produtos italianos aos clientes foi convertido em uma espécie de mercearia local, com entregas gratuitas em domicílio — coisa rara na Inglaterra. Segundo Kim Bates, diretora e coproprietária, eles tiveram de negociar com todos os fornecedores, um a um. Sem mesas, sem fila dentro do estabelecimento. Agora, é esperar do lado de fora e pagar com o cartão por meio de um balcão envidraçado. Foi assim que sobreviveram ao primeiro lockdown e é assim que pretendem manter o mercado agora. “Foi a forma que encontramos para criar uma proposta de negócio viável. Recorremos a nossos fornecedores para aumentar nossa gama de produtos. Criamos um serviço de entrega gratuita”, disse Bates, lembrando que, nos últimos meses, contou com o auxílio do governo e o apoio dos clientes locais, o que considerou crucial. Ela admitiu que se sente mais preparada agora. “Mas não temos certeza de quantas pessoas vão usar nossos serviços de novo. Espero, com base na experiência anterior, que nossa sobrevivência esteja garantida”, desabafou.

Diante dos riscos de um confinamento que, muitos temem, poderá até restringir as festas de fim de ano, Bates já pensa em um sistema de entregas para o Natal. “Construímos essa relação de confiança com nossos clientes, que sabem que podemos entregar em casa produtos de alta qualidade.”

Amazon, supermercados de todos os tamanhos e o comércio em geral investiram pesado na contratação de mais entregadores. Para evitar a confusão da primeira onda, quando as pessoas saíram ensandecidas enchendo os carrinhos por temer o pior, as grandes redes resolveram aumentar seus estoques de alimentos e produtos de limpeza (entre eles o famigerado papel higiênico, que sumiu das prateleiras no início do ano), além de limitar o número de artigos por cliente. A rede Tesco, uma das maiores varejistas do país, pediu que os clientes fizessem suas compras normalmente. Por e-mail, avisou que mais do que dobrou sua capacidade de entregas em domicílio.

Fazendas britânicas também conseguiram se reinventar, ao se digitalizar, criar páginas na internet e sistemas on-line de entregas. Mas essa não foi a realidade para todo o setor de comércio e serviços. Centenas de restaurantes, bares e pubs britânicos fecharam as portas de vez. Dos pubs, 37% ainda operam no prejuízo. Outras empresas não tiveram alternativa a não ser cortar vagas. Cerca de 700 mil postos de trabalho foram suprimidos durante a pandemia somente no Reino Unido, enquanto a fila de trabalhadores atrás do seguro-desemprego subiu para 2,7 milhões. Na Alemanha, cerca de um quinto das empresas teme não sobreviver à segunda onda.

A prestigiosa Royal Academy of Arts, em Londres, discute a possibilidade de vender uma escultura de Michelangelo de 100 milhões de libras (quase R$ 709 milhões) para enfrentar a crise e não ter de demitir 150 funcionários. Não chega a ser propriamente uma novidade nesse meio — que não pode se dar ao luxo de se sustentar sem a venda de entradas a visitantes presenciais ou sem a generosidade de patrocinadores e apreciadores da arte. O Museu Rodin, em Paris, seguiu esse caminho meses atrás. Outros perderam a cerimônia: pedem doações na hora da compra dos bilhetes pela internet e, depois, na entrada do museu. Alguns apelam para o kit de máscaras e álcool em gel que vendem inflacionados nas lojinhas, explicando que precisam se financiar.

No West End londrino, enquanto teatros tentam reabrir as portas, o famoso musical O fantasma da ópera sucumbiu. Fechou de vez. A direção disse que o novo coronavírus tornou o negócio inviável do ponto de vista financeiro. A peça estava em cartaz no Majesty’s Theatre desde 1986. O comércio já teme pelas receitas do fim do ano. Muitas lojas começam a tentar antecipar as novidades. O arcebispo da Cantuária, Justin Welby, por dever de ofício, tem fé. Em entrevista à rádio BBC 4, ele disse esperar que, até lá, o país tenha progredido bastante no combate ao coronavírus. “Para que seja uma festa de Natal diferente, mas que possamos comemorar o nascimento de Cristo na companhia uns dos outros, dentro dos grupos de família”, afirmou. No entanto, pode ser que Boris Johnson tenha de dar aos britânicos a notícia de que talvez nem isso seja possível.



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