Pular para o conteúdo principal

Pondé: Ambivalências do envelhecimento

Muito bom o texto do Pondé na FSP de hoje, vale a leitura!

Se sua vida foi um fracasso, ao envelhecer este fracasso se torna mais evidente

O envelhecimento é um dos horizontes através do quais pensaremos o futuro. Nosso destino e nosso grande inimigo. Aqui já se impõe uma das suas ambivalências estruturais.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, morto em 2017, descreveu a modernidade como ambivalente (antes do seu conceito blockbuster de “modernidade líquida”).
A modernidade é ambivalente porque ela cria soluções que geram problemas, numa derivação evidente do processo dialético, sem integração final das ambivalências.
Pois bem. Sobre o envelhecimento cai o típico véu da mentira contemporânea como método: mente-se porque o envelhecimento é uma ferida narcísica (Freud) que atinge em cheio a econômica da nossa autoestima.
Mente-se para produzir autoestima, um protocolo comum em nossos dias, na educação, na política, nas redes sociais, no coaching, no mundo corporativo, na filosofia, enfim, na teologia.
Aqui vai outra ambivalência do envelhecimento: quanto mais mentimos, mais nos afastamos do entendimento que pode nos ajudar a enfrentar esse horizonte inexorável.
Mais longevidade, mais solidão, mais lazer, mais depressão, mais possibilidade de (re)fazer escolhas, mais sexo, mais gastos, mais férias, mais exames médicos, mais paranoia.
Esse processo é descrito pelo filósofo francês em atividade Pascal Bruckner, no seu recente “Une Brève Éternité: Philosophie de la Longevité” (“Uma breve eternidade: filosofia da longevidade”, em tradução livre), editora Grasset, Paris, como esquizofrenia do envelhecimento.
 Ilustração da coluna do Pondé do dia 30.set.2019 - Ricardo Cammarota/Folhapress
Composto por agentes de difícil integração, o envelhecimento nos lança em experiências dilacerantes, apesar de ser melhor do que morrer cedo. E pra piorar, alguns (poucos) entre nós parecem envelhecer melhor do que outros, expondo a “desigualdade” até nesse campo.
Evidente que um dos marcos do bem envelhecer é a grana. Quanto mais pobre, mais a mercê da genética. Elemento de sorte que compõe a química do futuro de cada um de nós.
Quanto mais grana, mais possibilidade de sucesso no controle do envelhecimento em todos os níveis: saúde, férias, melhor condições de trabalho, mais usufruto dos avanços técnicos, mais beleza pós-juventude, enfim, a longevidade em si é um produto como a última geração de iPhones.
Homens e mulheres envelhecem de modo diferente. O Viagra libertou, em grande parte, o homem do envelhecimento sem sexo. Como já disse várias vezes, o Viagra fez mais pela humanidade do que 200 anos de marxismo.
Por outro lado, a mulher sofre mais do que o homem nas mãos do imperativo da vaidade e da beleza. Algumas mulheres fazem intervenções a ponto de ficarem parecendo bonecas infláveis fora do prazo de validade.
Homens que pintam o cabelo, portanto, fingem uma idade que não tem, são ridículos, logo, homens de cabelo branco têm valor no mercado dos afetos e do sexo.
Ledo engano daqueles que tiraram rápido a conclusão de que o parágrafo acima seja um panfleto contra as mulheres. Pensar de forma panfletaria e militante é uma das chatices de nossa época.
Não, mulheres envelhecem melhor do que homens em grande medida.
Cultivam melhor as amizades, se interessam mais umas pelas outras (mesmo que com uma pitada de gosto por falar mal das “amigas”), têm mais vínculos com os filhos (isso tende a mudar porque os filhos estão em rápida extinção), têm interesses múltiplos, recomeçam a vida com mais facilidade, grande parte ainda tem a “vantagem secundária” de terem tido mais tempo sem ter que pensar só em grana e, portanto, de desenvolver mais interesses múltiplos.
A emancipação feminina tende a eliminar essas “vantagens secundárias”. Mulheres gostam de conhecer mais coisas mais do que homens gostam. São mais curiosas e interessadas por uma gama gigantesca de novidades. Homens, na maioria dos casos, só pensam em duas coisas: mulher e trabalho.
Talvez um dos maiores marcadores do envelhecimento seja a noção de legado, tão em moda nos espaços mimimi por aí. O fato é que a juventude detém o futuro como trunfo. O idoso detém o passado, e este é “verificável cientificamente”.
Se sua vida foi um fracasso, ao envelhecer este fracasso se torna mais evidente do que nunca.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe