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Megainvestidor George Soros expõe seus temores

Para quem conhece o pensamento do megainvestidor e filantropo húngaro George Soros por meio do clássico “A alquimia da finança” (1988), talvez o maior interesse da leitura de “Em defesa da sociedade aberta” esteja em encontrar um perfil mais amplo e menos sólido de seu autor. Neste apanhado de textos em que expõe sua maneira de pensar, sobretudo o que denomina sua “estrutura conceitual”, Soros não esconde a apreensão de quem vê o mundo se encaminhando na direção oposta de seus ideais, com a ascensão de lideranças políticas com viés antidemocrático, a mudança climática, a falta de cooperação internacional, o excesso de poder das plataformas digitais. Nos capítulos de teor mais teórico, adota um tom ligeiramente lamentoso por ser mais conhecido como “o homem que quebrou o Banco da Inglaterra” do que como pensador. Tudo somado, os escritos de alguém cuja atuação alcança escala global revelam algo de essencialmente humano, escreve Diego Viana em resenha publicada no Valor na sexta, 23/7. Continua a seguir.


Ao ler os comentários do megainvestidor, convém ter em mente que, na última década, seu nome foi repetidamente martelado por extremistas políticos, alguns bastante poderosos. Ultranacionalistas, neonazistas e teóricos da conspiração fizeram de Soros um emblema do que denominam “globalismo” e denunciavam como um ataque a valores nacionais e tradicionais.

Viktor Orbán, presidente da Hungria e candidato a autocrata, tomou todas as atitudes que pôde para limitar a influência de Soros em seu país natal. O alvo favorito de Orbán foi a Universidade Centro-Europeia (CEU), fundada por Soros. Seu principal campus estava localizado em Budapeste até 2018, mas o governo húngaro introduziu mudanças na lei da educação superior que, na prática, expulsaram a universidade do país. A maior parte dos cursos foi realocada para Viena, capital da Áustria.

Atacado com veemência, Soros se tornou um símbolo. A bem dizer, a figura do megainvestidor húngaro já carregava um forte simbolismo antes mesmo de sua apropriação pela extrema direita conspiracionista. Ao longo da década de 1990, Soros era evocado sempre que uma crise financeira assomava no horizonte, depois de lucrar US$ 1 bilhão em 1992 graças a uma crise cambial no Reino Unido. A crise de 2008 reforçou a imagem de mago das finanças do investidor húngaro. Este é, em todo caso, um livro que contém as ideias de um símbolo, traduzidas para o público amplo.

É no confronto entre o lado simbólico do magnata nonagenário e suas confessadas frustrações (o termo é do próprio autor) que transparece a humanidade do personagem. As passagens que relatam detalhadamente a criação das fundações Sociedade Aberta e da CEU têm um indisfarçado tom autocelebratório que, à luz dos retrocessos da última década, acaba mitigado. Com sua filosofia luminosa e discretamente ingênua, a voz de Soros parece ser a portadora de um otimismo histórico que logo reconhecemos como pertencente aos últimos 20 anos do século XX, quando a economia de mercado rapidamente se expandia para áreas que até então lhe resistiam energicamente e dezenas de países se converteram à democracia liberal.

Como diz o próprio Soros, o projeto inicial de sua atividade filantrópica era manter a “sociedade aberta” a salvo de inimigos que a ameaçavam, ou queriam ameaçar. No mundo de Donald Trump, Orbán e seus êmulos, o objetivo passou a ser o resgate da própria ideia de uma sociedade aberta.

Como o próprio autor relata, este conceito é herdado diretamente do epistemólogo austríaco Karl Popper, que publicou seu livro “A sociedade aberta e seus inimigos” em 1945, quando o triunfo sobre o nazismo e a ameaça stalinista justificavam distinções bem talhadas e evidentes. Assim, uma “sociedade aberta” é aquela que comporta a diversidade dos pontos de vista e os confrontos de ideias. Seus inimigos são aqueles que pretendem organizar a vida em comum a partir de uma única ideia. Por melhor que ela seja, só pode ser amplamente adotada sob coerção, o que conduz a sociedades repressivas.

Ao descrever sua concepção da sociedade aberta, Soros aponta uma pequena particularidade em relação à de Popper, que foi seu supervisor no início da década de 1950, na London School of Economics. Onde este último se refere à imposição coercitiva de uma verdade última, ampliando e atualizando a ideia original de Henri Bergson, o filantropo acrescenta a figura de um indivíduo que realiza essa coerção, um líder político que encarna o fechamento da sociedade. Soros não entra em detalhes sobre o motivo dessa adição, que, se aplicada literalmente, excluiria da definição muitos regimes da Cortina de Ferro, que ele combateu.

No entanto, a pequena diferença ajuda a entender a recorrente menção ao nome de Vladimir Putin, presidente da Rússia. Os capítulos biográficos, que narram a história das fundações Sociedade Aberta e da CEU, pontuam em diversas passagens os momentos em que os planos do líder russo se chocaram com os projetos do filantropo, a tal ponto que parece emergir uma rivalidade entre dois indivíduos. Ou seja, não se trataria simplesmente de Putin querendo expandir seu poder, mas haveria também um elemento de retaliação contra o próprio Soros, individualmente.

O conflito ucraniano e a anexação russa da Crimeia, em 2014, são denunciados por Soros como alguns dos maiores perigos enfrentados pela União Europeia. Ele exorta o continente a tomar medidas mais duras contra a potência a Leste e confessa estranhamento pelas respostas prudentes das autoridades supranacionais, chegando a compará-las à fracassada estratégia de conciliação com Hitler do primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain em 1938.

Talvez este seja o ponto em que as limitações da filosofia de Soros apareçam com maior clareza: na rivalidade entre o filantropo e o presidente russo, só um dos lados pode dispor de bombas atômicas, tanques e caças, sem falar na chantagem com o fornecimento de gás. Este é um dado com o qual os líderes europeus têm de contar, diferentemente do megainvestidor.

Comentando os perigos da economia de plataformas, com uma crença possivelmente excessiva na oposição clara e distinta entre regimes políticos de liberdade e de opressão, Soros antevê o perigo de uma aliança entre governos antidemocráticos e as corporações digitais que controlam a atenção de bilhões de usuários mundo afora, minando sua liberdade de pensamento e sua capacitação para a cidadania. Essa conjunção de interesses geraria, alerta o filantropo, um poder de vigilância totalitário para além dos sonhos de George Orwell.

Soros chama atenção em particular para uma iniciativa com potencial catastrófico: o projeto chinês do “sistema de crédito social”, que consolida formas “peer-to-peer” de controle social com base nos sistemas de “curtidas” e avaliações das redes sociais. No entanto, apesar do escopo chamativo do projeto chinês, as tecnologias que deixam Soros ressabiado já têm feito seus estragos em outros cantos do mundo há alguns anos. A fusão da capacidade de vigilância privada com a estatal já ocorreu nos Estados Unidos e no Reino Unido, conforme revelado por Edward Snowden em 2013, muito antes de Soros apontar China e Rússia como os países onde essa fusão aconteceria em primeiro lugar, na palestra diante dos participantes do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, em fevereiro de 2018.

Em paralelo, Soros deixa de lado o fato de que tecnologias de reconhecimento facial já vêm sendo usadas por forças policiais de dezenas de países no mundo, incluindo a China, o Japão, a Coreia do Sul, os Estados Unidos e várias democracias europeias. Na pandemia, essas ferramentas adquiriram uma legitimidade inesperada, com o controle sobre pessoas que furavam a quarentena. Recentemente, o Brasil também tentou a compra de um programa israelense de espionagem digital. Os problemas ligados a essas tecnologias se acumulam, para além das já assustadoras vigilância constante e quebra de privacidade: os algoritmos tendem a reproduzir padrões racistas clássicos no mundo analógico, incluindo a dificuldade de distinguir entre dois rostos negros apenas ligeiramente semelhantes. O fato de que tudo isso esteja acontecendo em sociedades que consideramos abertas poderia constituir um sintoma dos perigos que Soros busca denunciar.

Os seis capítulos de “Em defesa da sociedade aberta” compõem uma pequena colcha de retalhos das ideias do megainvestidor. O primeiro contém a transcrição de duas palestras em Davos, em 2018 e 2019. O segundo, que trata do histórico das fundações Sociedade Aberta, foi escrito especificamente para este volume, assim como o terceiro, que conta a trajetória da CEU. Os dois capítulos seguintes trazem pouca luz nova a quem está interessado em conhecer as entranhas do pensamento de Soros. O quarto é um trecho do livro “O novo paradigma dos mercados financeiros”, publicado em 2009, em que o investidor critica a resposta do governo americano à crise financeira de 2008. O quinto tem por base ensaios, palestras e outras intervenções ao longo do amplo período que vai de 2014 a 2019, para tratar das múltiplas crises europeias. É sobretudo no último capítulo que Soros apresenta sua estrutura conceitual, explicando os conceitos de falseabilidade e reflexividade que empregou na vitoriosa carreira nos mercados financeiros.

Em defesa da sociedade aberta

George Soros Trad.: Cássio de Arantes Leite Intrínseca, 192 págs. R$ 49,90



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