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A vida que ele levou: Contardo Calligaris (1948-2021)

“Quando perguntam como eu gostaria de morrer, respondo que fazendo a experiência da minha morte. Gostaria que alguém fizesse comigo os cuidados paliativos, ou seja, me deixasse sem dor, mas perfeitamente acordado para eu me sentir morrendo. Isso é viver de uma maneira interessante, inclusive o momento da morte.” Relendo a declaração feita por Contardo Calligaris em 2019, dá para dizer que ele realizou seu desejo. Viveu e morreu de forma interessante e intensamente. Para ele, a felicidade não poderia ser um ideal que muitas vezes se transforma em nosso imperativo moderno. A vida pode valer a pena mesmo nos momentos de dor e sofrimento, como agora, quando nos despedimos deste italiano nascido em Milão, em maio de 1948, e que, depois de muitas viagens, tornou-se brasileiro por amor e opção, escreve Robson de Freitas Pereira em obituário publicado no site da revista Época dia 2/4. Continua a seguir. 


Contardo contava que o gosto pelo questionamento dos mistérios do mundo levou seu pai, um médico antifascista, a dizer um dia que havia se equivocado ao escolher o nome do filho. Em vez de Contardo, deveria tê-lo nomeado “Contrário”, por causa de sua mania de sempre começar as frases com “mas”. Adulto, isso não mudou. Quem conviveu com Contardo sabe que, além de gostar de uma conversa, era visível seu apreço pelo contraponto. Bastava alguém ter uma ideia muito estabelecida que logo vinha a provocação: mas será que... Obviamente, logo percebíamos que não se tratava de “ser do contra”, mas de sustentar uma atitude de abertura, de construção de um saber junto com os outros, no diálogo. Seus seminários e conferências eram exemplares, cheios de erudição, referências que passavam pela psicanálise, filosofia, semiótica, matemática, música popular, cinema, teatro... Para ele o fundamental eram as contribuições, principalmente as dos mais jovens. Saber, com invenção e sabor. Influência de seu mestre Roland Barthes, o semiólogo francês.

Sua trajetória começou na Suíça, onde foi estudar com o psicólogo Jean Piaget e o ensaísta e crítico literário Jean Starobinski. O interesse pela pintura e pela literatura rendeu uma dissertação sobre seu conterrâneo Italo Calvino ainda no início dos anos 1970. Depois chegou a Paris. Na capital francesa, começou sua análise com Serge Leclaire e assistiu aos seminários de Jacques Lacan. O gosto pelo contraponto se mantinha. Num ambiente intelectual dominado pelos estruturalismos, Contardo mergulhou na filosofia analítica e na psicanálise, sem deixar de lado a ficção policial.

Na metade dos anos 1980, poucos anos depois da morte de Lacan, Contardo começou a viajar ao Brasil. Inicialmente para lançar a edição em português de Hipótese sobre o fantasma, em 1986. Logo, passa a clinicar e fazer seminários regulares em Porto Alegre e em São Paulo. No Brasil, começou sua grande aventura, no mais amplo e rico sentido. Em 1989, depois de casar e fixar residência em Porto Alegre, Contardo nos apresentou a proposta de uma associação psicanalítica, uma de suas ousadias inventivas. A concepção era diferente de tudo que já se tinha vivido ou pensado até então. A novidade seria criar uma instituição que privilegiasse a circulação transferencial, que tivesse uma relação vital com a cidade e que se constituísse a partir da dissolução das instituições e dos grupos de estudos já existentes. Não se tratava de propor uma federação de grupos onde cada um manteria suas transferências e modos de funcionamento. Desta vez, teríamos de perder algo, abrir mão do já instituído para apostar em algo novo.

Contardo soube conduzir esse processo, ajudando a superar rivalidades, invejas e desconfianças, conseguindo evidenciar que se tratava de uma tentativa de contribuir real e inovadoramente à psicanálise no Brasil. A partir daí, surgiu a Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), nossa vida mudou, e a própria psicanálise de norte a sul do país também. Era possível exercer um desejo de liberdade intelectual e da atenção clínica. O entusiasmo não diminuiu a exigência de estudo e rigor conceitual. Mas os conhecimentos se diversificaram. Além dos estudos de Sigmund Freud e Lacan, fomos apresentados a bases antropológicas, históricas, filosóficas, matemáticas, linguísticas e culturais. Em diversas ocasiões Contardo fazia questão de marcar a importância de nossa língua e nossa cultura como fatores fundamentais para a escuta de um psicanalista. Isto foi uma das marcas em nossa trajetória, fazer a aposta real de articular a vida concreta das pessoas com a interpretação e contribuição da psicanálise.

Se nada do que é humano e brasileiro nos é indiferente, a clínica psicanalítica passou a ter mais rigor e amplitude. A escuta rompeu as paredes dos consultórios e foi para as ruas, os centros de assistência, centros de saúde mental, escolas, acampamentos indígenas ou de sem-terra. Ou seja, foi para onde quer que fosse possível um psicanalista escutar o sofrimento e intervir.

Contardo esteve no centro de tudo isso, nos ajudando a sustentar um verdadeiro discurso psicanalítico, sem precisar segregar as pessoas porque não tinham a mesma trajetória ou transferências. Ele, que incialmente chegou ao Brasil como um lacaniano, pois tinha participado da Escola Freudiana de Paris até sua dissolução, aqui encontrou pessoas com quem pôde constituir uma proposta de trabalho inovadora, que rompeu com as instituições mais tradicionais e conservadoras. As análises conduzidas, onde leveza não era sinônimo de indiferença, as supervisões, os seminários deixaram marcas. Mais do que isso, conseguiram realizar em ato um desafio histórico proposto: cada psicanalista tem a responsabilidade de reinventar a psicanálise a cada paciente.

Na metade dos anos 1990, Contardo mudou-se novamente. Primeiro para os Estados Unidos, morando em Nova York e Boston, lecionando na Universidade da Califórnia em Berkeley e na New School. Ao voltar ao Brasil, acabou fixando-se definitivamente em São Paulo, onde seguiu sua aventura de deixar o pensamento Psi (nome da série televisiva que criou e dirigiu) navegar por outros mares: teatro, livros de ensaios, novelas, reportagens especiais e a coluna semanal que gostava de chamar de crônica, mantida de 1999 até fevereiro deste ano no jornal Folha de S.Paulo. Consolidou sua posição intelectual e brasileira, desejo manifestamente expresso em uma de nossas conversas. Sua capacidade de fazer com que o medo do novo, do desconhecido pudesse ser enfrentado e transformado em propostas surpreendentes, sabendo que sempre contamos uns com os outros, continua vigente. Seguimos o exemplo de Contardo, com um sorriso e seriedade. Ele agora faz sua derradeira travessia vitimado por um câncer. Que Caronte, barqueiro da mitologia grega que carrega os recém-mortos, a poesia, a música e nosso amor lhe sirvam de guias. Boa viagem, querido amigo.

Robson de Freitas Pereira é psicanalista e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA)



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