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A ditadura é uma rua de um só sentido, diz o historiador Yuval Harari

O historiador israelense Yuval Noah Harari, um dos mais populares pensadores da atualidade, diz que a pandemia de covid-19 mostrou a necessidade de maior cooperação global para que se evitem os problemas que podem ser causados pela mudança climática. Ele também vê riscos à democracia no excessivo controle de dados que algumas empresas e governos vêm obtendo sobre as pessoas e na polarização política que passou a dominar tantos países. Harari, que participou da Softys Innovation Week 2021, evento promovido pela Softys, empresa do grupo chileno CPMC na área de produtos de higiene e cuidados pessoais, respondeu a perguntas dos organizadores. “A ditadura é uma rua de um só sentido, pode-se entrar facilmente, mas é extremamente difícil sair”, disse. Matéria publicada no site do Valor no sábado, 17/4, vale a leitura.

 

A seguir, uma síntese dos principais temas abordados por Harari.

Capitalismo de vigilância - O que acontece quando uma empresa sabe sobre mim muito mais do que eu sei sobre eu mesmo? Nunca foi possível no passado hackear os seres humanos. Ninguém pode coletar e analisar todos os dados necessários, mas agora isso está sendo possível, tanto para os governos como para algumas das grandes corporações, coletar tantos dados e ter tanta potência cibernética para que eles possam me entender efetivamente, entender meus desejos, meus medos, minhas esperanças, entender melhor do que eu entendo e logo podem me manipular de inúmeras formas. Isso é o que coloca uma responsabilidade ética sobre elas.

Diria que nesse quesito de dados e da coleta de dados, deveríamos seguir três diretrizes básicas. Primeiro de tudo, meus dados privados deveriam ser usados para me ajudar e não para me manipular. Para exemplificar penso nos médicos. Meu médico sabe muitas coisas sobre mim que eu não sei, mas é responsabilidade do médico usar essa informação para me ajudar e não me manipular ou vender essas informações a um terceiro. Deveria ser igual para outras corporações ou instituições que têm tantos dados sobre mim.

O segundo princípio é que quando aumentarem a vigilância sobre as pessoas, devem equilibrar aumentando a vigilância das pessoas que estão acima, das instituições e corporações poderosas da sociedade. Se a vigilância só vai em um sentido, o governo e as grandes empresas me supervisionam e eu não os supervisiono, esse é o caminho mais rápido para uma ditadura. Agora temos a tecnologia para fazer com que tudo seja transparente para o público.

O terceiro princípio é nunca concentrar muitos dados em um só lugar. Não importa se esse lugar é uma corporação ou um governo, se todos os dados estão em um só lugar, novamente essa é a receita para uma ditadura.

Fazer-se ouvir pelo bolso ou pelo voto - Não temos que escolher, temos que ter os dois. Temos nosso poder como consumidores, de escolher diferentes produtos e diferentes empresas, e temos nosso poder de cidadãos, e eles vão em diferentes direções. Quero dizer que deveria estar claro que alguns temas são inerentemente políticos e têm que ser decididos através de um processo político, o livre mercado não pode resolver.

Se falamos muito sobre a regulamentação de dados, isso não se pode realizar por meio de uma eleição dos consumidores, dizendo que não gostam das políticas de dados do Facebook ou da Amazon, e que vão consumir de uma nova empresa e que isso de alguma forma criará um controle sobre as políticas de dados delas. Isso não funcionará. Já são tão poderosas, têm tantos dados, que somente um poder político pode regular, e em alguns países até os governos ficam desamparados.

Talvez o governo dos Estados Unidos possa regular esses gigantes tecnológicos de maneira efetiva, mas muitos dos países menores, se não se unem, não têm nenhuma chance de regular. E isso deveria vir de baixo. Os cidadãos desses países deveriam saber o perigo que estão enfrentando e deveriam exigir que o governo desse prioridade para a regulamentação e para entender se os dados das pessoas desse país estão sendo coletados e quem está se beneficiando com eles.

Polarização e o risco à democracia - Lamentavelmente vemos muitas ameaças à democracia em todo o mundo. Em muitos lugares as pessoas até esqueceram o verdadeiro significado de democracia. Pensam que por que a cada quantidade de anos têm eleições, escolhem um governo e então esse governo pode fazer o que quiser e que isso é democracia, mas isso não é democracia. Isso é somente a ditadura da maioria.

A democracia é um sistema de governo que garante a liberdade e a igualdade de todos os cidadãos, pertencendo à maioria ou à minoria, e coloca limites sobre o que um governo ou a maioria podem fazer. Sim, a política pública deveria ser realizada segundo a vontade da maioria. Quantos impostos pagamos? Que tipo de acordo firmamos? Entrar ou não em um conflito armado. Essa é a vontade da maioria. Mas deveria haver limites para ela.

Por exemplo, se 51% das pessoas vota a favor da restrição do direito a voto, para as outras 49% isso não é democrático. E se 99% das pessoas querem colocar os outros 1% em campos de concentração e matá-los, ainda que 99% das pessoas assim o queiram, não se deveria fazer, não é democrático. Então, primeiro de tudo, temos que entender o que é a democracia. Não é só eleições, é muito mais que isso.

Em segundo lugar, temos que apreciar as grandes vantagens da democracia, especialmente em um momento de crise como este, em que muitas pessoas se prendem à ideia de que uma ditadura é melhor porque é mais eficiente. E é verdade. No curto prazo as ditaduras às vezes são mais eficientes porque não necessitam ceder muito, nem ter articulações ou o que seja. É só uma pessoa que toma todas as decisões e passa sem piedade por cima de qualquer um que tente se opor, então é mais rápido, mais eficiente nesse sentido, mas a longo prazo é muito ineficiente e perigoso.

Primeiro porque todos cometem erros, ninguém é perfeito. Quando um governo democrático comete um erro, é mais fácil saber sobre ele e corrigi-lo, e se o governo se nega a mudar seu rumo, pode-se simplesmente substituir o governo, como o que aconteceu com os Estados Unidos e com a desastrosa política de Trump em relação à covid.

Em uma ditadura, se o ditador comete um erro, nunca o admite. Ele usa seu controle sobre os meios de comunicação para colocar a culpa dos problemas em inimigos estrangeiros ou traidores internos e ainda exige mais poder. Então, em vez de corrigir o erro, o sistema o amplia, o deixa maior ainda.

A segunda vantagem é que com informação livre, com liberdade de imprensa, de expressão, a informação circula melhor e, por exemplo, quando uma pandemia começa em uma ditadura, existe uma tendência a eliminar as notícias ruins e, como não há liberdade de imprensa, é difícil saber sobre algo até que seja muito tarde. Em uma democracia, ainda que algum funcionário do governo tente eliminar as notícias ruins, algum jornalista ou algum cidadão pode publicar.

Da mesma maneira, se pensarmos nas vacinas, pessoalmente eu preferia me imunizar com uma vacina produzida, investigada e produzida em um país democrático do que em uma ditadura, a menos que mais adiante a vacina que vem dessa ditadura seja aprovada em um país democrático. Por razões óbvias, quero dizer, em uma democracia se uma vacina mostra um efeito colateral grave ou que não é efetiva, isso vai ser publicado, o público saberá. Em uma ditadura nunca se está seguro disso. A ditadura é uma rua de um só sentido, pode-se entrar facilmente, mas é extremamente difícil sair.

Pandemia e problema climático - Acho que poderia servir como um alerta ver quanta perturbação é causada por uma pandemia relativamente leve, que resultou de um vírus que provavelmente passou de um morcego para um ser humano. Vejam as consequências. Agora penso sobre quais seriam as consequências de uma alteração ecológica maior, potencialmente envolvendo não só mais pandemias, mas também muitos outros fatores.

Então, espero que este seja um chamado de alerta para todos, os governos, as empresas e os cidadãos, de que temos que começar a atuar como é devido e cooperar para prevenir alterações ecológicas catastróficas.

O que deveria ficar claro para todos é que para lidar seriamente com o perigo da mudança climática e do colapso econômico, só podemos fazer por meio da cooperação global. Nenhum país sozinho, incluindo os mais poderosos como China e Estados Unidos, é capaz de prevenir as catastróficas mudanças climáticas. Então realmente espero que as lições da covid entrem nas mentes dos líderes e dos cidadãos e que isso resulte em uma melhor cooperação global.



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