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Os movimentos do empresariado para a eleição de 2022

Artigo de Maria Cristina Fernandes, no Valor, publicado dia 12/3, íntegra a seguir.  

Recém-investido de autonomia legal pelo Congresso, o Banco Central está para mover o tabuleiro em que, até aqui, bancos, investidores e empresários jogaram no “apoio crítico” ao governo. O Conselho de Política Monetária está pressionado a elevar a taxa de juros em meados de março. A decisão, que tem sido cobrada por bancos e investidores, face à pressão do câmbio e da inflação, afeta a estratégia de recuperação das grandes empresas, fortemente calçada nos estímulos do BC.

Se a curva da taxa Selic embicar para cima, terá sido a primeira vez que isso acontece desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Como o presidente Jair Bolsonaro mantém uma maioria parlamentar indisposta à abreviação de seu mandato, o movimento tem duas consequências. A mais imediata é o fortalecimento do Congresso na mediação entre agentes econômicos e um governo cada vez mais pressionado. A segunda é o rearranjo de forças com vistas à sucessão presidencial.

Desde a aprovação da reeleição, nenhum presidente deixou de alcançar um segundo mandato. Por isso, o presidente Jair Bolsonaro é mantido, sob torpor nacional, na condição de quem terá vaga garantida no segundo turno da disputa. Contra quem? A anulação dos processos e condenações oriundos da 13ª Vara Federal de Curitiba, pelo ministro Edson Fachin, pode devolver os direitos políticos ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A volta de Lula ao tabuleiro embaralhou o jogo de Bolsonaro, que precisará recuperar o dano que a gestão da pandemia causou à sua imagem se quiser ter alguma chance de ressuscitar o antipetismo. Bagunça também o coreto das terceiras vias, do ex-ministro Ciro Gomes ao apresentador Luciano Huck, passando pelo governador de São Paulo, João Doria, que custarão a se recolocar num eixo novamente polarizado.

Debruçado sobre os reflexos dos rearranjos no PIB na política nacional desde sua tese de doutorado, em 2010, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde hoje é professor, Eduardo Costa Pinto é cético. Coteja a queda no PIB em 2020 com o desempenho ascendente das 400 maiores empresas para mostrar o descasamento que deu lugar a um movimento de forte concentração empresarial. Esta concentração foi facilitada por políticas adotadas desde o impeachment de Dilma e das quais o grande empresariado, aposta, resistirá a abrir mão.

Foi um movimento com estímulos distintos daqueles observados no governo Luiz Inácio Lula da Silva e sobre os quais Costa Pinto se debruçou em “Bloco no Poder e Governo Lula: grupos econômicos, política econômica e novo eixo sino-americano” (UFRJ/2010). Se naquela época o agronegócio conseguiu anular o peso de um câmbio desfavorável com a alta das commodities, o setor financeiro ampliou seu patrimônio líquido com a manutenção de uma política de juros elevados que lhe proporcionou altas taxas de rentabilidade e lucro. E, por fim, a indústria extrativa e as grandes empreiteiras foram largamente beneficiadas pela expansão do investimento público que marcou a era das “campeões nacionais”.

No governo Dilma, os estímulos ao setor industrial ficariam insustentáveis. Abertas as comportas de tarifas públicas represadas, a inflação subiu e prejudicou sua tentativa de reduzir as taxas de juros. Sua queda mudou o eixo dos estímulos à economia. O “Ponte para o Futuro”, programa com o qual o MDB do então vice-presidente Michel Temer se mostrou timoneiro confiável ao grande empresariado para a aventura do impeachment, mudou o eixo das mudanças estruturais que embicaram para cima a curva do lucro.

Quem sobreviveu à crise que marcou o fim do governo Dilma, diz Costa Pinto, se fortaleceu com a redução de custos que estava do outro lado da ponte. Primeiro o Congresso aprovou a reforma trabalhista, que permitiu até o trabalho insalubre de grávidas. O dispositivo só não está em vigor porque o Supremo Tribunal Federal o considerou inconstitucional. A reforma, porém, permitiu às grandes empresas desmobilizar as reservas financeiras para processos trabalhistas.

Depois veio a reforma da Previdência, que esticou o prazo para a aposentadoria, levando ao achatamento das expectativas de renda. Salário mínimo, plano de saúde e carteira de trabalho tornaram-se o teto para milhões que foram onerados com a comprovação de anos a mais de emprego formal no passaporte para a aposentadoria. Com a posse de Bolsonaro veio a redução mais acentuada na taxa de juros, que reduziu a rentabilidade do sistema financeiro, mas permitiu a grandes empresas baratear suas dívidas. Com fluxos de amortização reduzidos, aumentaram seu patrimônio e se capitalizaram.

Quando a pandemia chegou, as grandes empresas já vinham desse movimento ascendente. Capitalizadas, investiram na digitalização de suas operações e ganharam mercado em cima daquelas que já tinham perdido fôlego na crise de 2015. E, finalmente, com o real enfraquecido e a demanda chinesa em alta, assistiu-se a uma recuperação expressiva de segmentos exportadores, especialmente da indústria extrativa e do agronegócio.

A entrada da engajada empresária Luiza Trajano no rol de presidenciáveis revela menos sua disposição em concorrer do que o desempenho fora da curva nos papéis da empresa. A cotação da Magazine Luiza multiplicou-se sucessivamente nos últimos anos, chegando a uma relação preço/lucro de 200. Na Apple, uma das empresas que mais se valorizou no mundo, esta relação é de 32.

Ao final do terceiro trimestre de 2020, quando o desempenho do comércio em todo o país recuava 5%, a edição anual da revista “Forbes”, a primeira desde a adoção do auxílio emergencial, trazia Luiza Trajano como a estrela da lista dos 40 bilionários do Brasil. Além de reduzir a miséria ao patamar mais baixo dos últimos 40 anos, o auxílio também produzira a multiplicação de fortunas no varejo. Com um patrimônio 133% maior que no ano anterior, Luiza ocupava a oitava posição entre os bilionários brasileiros e a primeira entre as mulheres. A derradeira oferta de ações da empresa também alçou para o ranking Fabrício, Franco e Flávia Bittar Garcia, netos da fundadora e sobrinhos de Luiza.

Na sua cola na lista da “Forbes” estão dois empresários da retaguarda bolsonarista, o emblemático Luciano Hang e Michael Klein, da Via Varejo. O dono da Havan teve um crescimento patrimonial de 125% no ano da pandemia e Klein é o mais antigo varejista a figurar no ranking, que é acrescido ainda de Ilson Mateus, empresário maranhense que expandiu o grupo que leva seu sobrenome a partir de uma das mais prósperas fronteiras agrícolas do país, o sul do Maranhão.

A pandemia produziu ainda, na saúde, um dos exemplos mais cristalinos de concentração empresarial. Até o terceiro trimestre de 2020, o setor havia perdido mais de um terço de seu lucro líquido. A crescente ocupação de leitos pela covid-19 aumentou os custos de medicamentos e equipamentos de proteção individual e reduziu os procedimentos eletivos. O maior sinal de que o jogo é para gigantes veio, no fim de fevereiro, com a fusão das duas maiores operadoras de planos de saúde do país, Hapvida e Intermédica.

Antes da fusão, o principal acionista da Hapvida, Candido Pinheiro Koren de Lima, já era o empresário brasileiro da saúde de mais alta colocação no ranking da “Forbes” (11º), à frente de Dulce de Godoy Bueno, da Amil, e Jorge Neval Moll Filho, da Rede d’Or.

No setor financeiro, as ações dos bancos têm tido um desempenho abaixo do Ibovespa ao longo dos últimos três anos, em parte por um movimento inverso àquele que acontece no resto da economia. Enfrentam a concorrência das empresas financeiras de serviços digitais, as chamadas “fintechs”, e ganham menos com a tesouraria, em função da queda na taxa de juros.

O Ibovespa virou o ano no seu pico histórico de 125 mil pontos, em grande parte alavancado por uma classe média que migrou dos rendimentos de juros baixos para papéis em alta das grandes empresas. De lá para cá, no entanto, a curva do Ibovespa é descendente, deslocando-se do S&P e do Nasdaq.

É nesse movimento que Eduardo Costa Pinto vê aumentarem as tensões. A aprovação de uma nova rodada de auxílio emergencial, ainda que mitigado, pode dar alguma folga para setores empresariais que dependem do mercado interno, assim como o dólar valorizado tende a manter os ganhos da indústria extrativa e do agronegócio.

Os sinais de descontrole fiscal do governo, porém, ainda que temporariamente represados pela aprovação da PEC Emergencial, dificultam a reversão do pessimismo dos investidores. A aprovação do pacote de estímulos de US$ 1,9 trilhão nos Estados Unidos, que gera temor de aquecimento na economia, pressiona os juros, atrai capitais e faz sombra sobre os mercados emergentes.

A este redemoinho acresça-se a pressão sobre o próximo Copom. O giro se dá na direção inversa àquele que ajudou a derrubar Dilma. Entre 2015 e 2016, na vigência de juros altos e baixa concorrência, os lucros dos bancos se mantinham altos, enquanto as grandes empresas afundavam e, com elas, o Ibovespa. Os lucros das empresas caíam enquanto a renda salarial continuava aumentando.

Por isso, a sucessão de 2022 traz um novo impasse. Tanto Lula quando Bolsonaro só têm o campo da moderação para crescer. Depois da desastrosa gestão da pandemia, os movimentos do presidente da República nesta direção poderão ter chegado tarde demais. Lula não terá dificuldades de fazer concessões à pauta liberal porque já percorreu esse caminho. A questão agora é saber até onde. Na outra margem do rio, aposta Costa Pinto, as grandes empresas não estarão dispostas a abrir mão dos ganhos obtidos com as reformas feitas desde a queda de Dilma. No limite, terão consciência de que avançar na pauta é inviável eleitoralmente, mas não aceitarão retroceder.

Maria Cristina Fernandes, jornalista do Valor, escreve neste espaço quinzenalmente



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