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Estudo do Insper mostra que pandemia agravou a desigualdade

Uma crise da dimensão da atual pandemia causa seus maiores males justamente nas áreas mais expostas. Se, por um lado, amplifica os problemas de uma sociedade, por outro também pode servir para apontar caminhos prioritários. Realçar essas prioridades é a finalidade dos ensaios reunidos no livro “Legado de uma Pandemia: 26 Vozes Conversam Sobre os Aprendizados para a Política Pública”, editado pela economista Laura Muller Machado, professora do Insper. “A pandemia fez cair muitas fichas no Brasil. Os problemas que mais apareceram já existiam, como o racismo, a desigualdade de oportunidade e o conflito entre os direitos à habitação e à propriedade”, afirma o economista Ricardo Paes de Barros, também professor do Insper e colaborador do livro. “São problemas históricos brasileiros, e, no meio da crise, começamos a encontrar caminhos novos para solucioná-los”, diz. O livro contém sobretudo estudos de professores do próprio Insper e se divide em quatro partes, cada uma dedicada a um tema em que a pandemia causa um impacto com consequências de longo prazo: a ordem social, a econômica, a organização do Estado e o campo da política e da comunicação. O lançamento contou com uma série de quatro webinários, dos quais participaram os autores e debatedores convidados, reporta Diego Viana no Valor, em matéria publicada dia 19/3. Continua abaixo.


Com capítulos sobre as possibilidades e o limite da atuação dos governos sobre a economia em momentos de crise, as demandas sobre a gestão pública e os desafios da comunicação em tempos de redes sociais, o livro traça um panorama amplo das questões que foram alçadas ao primeiro plano com a irrupção da crise sanitária. A seção que trata da ordem social traz as contribuições com maior teor de novidade.

No capítulo “O Despertar de um Novo Olhar Sobre o Viés Racional”, os economistas Michael França e Sergio Firpo argumentam que “um dos maiores legados da pandemia foi ter ampliado a sensibilidade da população para a temática racial”.

No Brasil e em outros países, as parcelas não brancas da população sofreram um impacto maior tanto em termos do número de vítimas da doença quanto no aumento do desemprego. Os dados escancararam uma desigualdade racial que já era conhecida, mas ainda não produziam uma reação tão clara na sociedade.

“Ainda no começo de 2020, saíram muitas reportagens nos Estados Unidos perguntando por que os negros estavam morrendo muito mais do que os brancos”, recorda França. “Depois, em maio, a morte de George Floyd [sufocado por um policial em Minneapolis] foi o estopim da maior onda de protestos antirracistas da história.”

No Brasil, o economista identifica um aumento de espaço para que intelectuais negros se posicionem e intervenham no debate público. “O ponto positivo é que a população teve mais acesso a essa temática, o que leva à conscientização cada vez maior. Com isso, podemos conceber e construir políticas públicas mais efetivas”, afirma. Na questão racial, portanto, o desafio para o pós-pandemia é aproveitar o impulso para “construir um debate mais inclusivo e construtivo, baseado em fatos e evidências”.

França adverte, porém, que o cenário envolve riscos importantes. Junto com maior sensibilidade e conscientização também veio um “aquecimento” do debate racial, com uma linguagem mais agressiva e manifestações de racismo explícito. “Na política, testemunhamos uma polarização muito exacerbada. A possibilidade de uma polarização racial é uma hipótese que deve ser olhada com cuidado”, afirma. Nesse caso, o risco de uma piora das relações raciais nos próximos anos é real.

O capítulo sobre educação, “Como Atenuar os Efeitos Sobre a Desigualdade na Educação Básica”, é assinado pelo economista Naércio Menezes Filho. Para ele, o impacto da pandemia sobre os estudantes é maior do que apenas a perda de um ano de aulas, já que os primeiros seis anos de vida são fundamentais para o desenvolvimento das habilidades sociocognitivas e emocionais das crianças. Aquelas que enfrentam problemas nesse período carregam as perdas para o resto da vida: não vão bem na escola, têm maior probabilidade de evasão e encontram dificuldades para a inserção no mercado de trabalho.

“Essa vai ser a maior fonte das desigualdades que a pandemia vai provocar, no campo da educação e da saúde, com efeitos ao longo de toda a vida dessas crianças”, afirma Menezes. “A pandemia afeta principalmente as crianças mais pobres, que vivem em domicílios muitas vezes lotados de pessoas, sem acesso ou com acesso muito ruim à internet. A família também está irritada e ajuda menos, a interação com os colegas faz falta. São muitos fatores com grande impacto no desenvolvimento infantil”, completa.

As crianças mais velhas enfrentam problemas semelhantes, embora em fase menos determinante da vida. Sobretudo em regiões remotas do país, a falta de acesso à internet se mostrou um grande entrave. Essas crianças e adolescentes também dependeram mais dos pais para ajudar com as lições on-line, mas muitas vezes os adultos também têm baixa escolaridade e não conseguem oferecer a ajuda necessária. A alta taxa de abstenção do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) do ano passado é um indício do forte impacto sofrido pelos estudantes de classe baixa.

“Vimos com muita clareza, nesse período, que a realização das atividades educacionais varia de acordo com a escolaridade dos pais, a raça, a renda e outros fatores que expressam a desigualdade no Brasil. Para lidar com tantos problemas, vai ser preciso adotar políticas públicas efetivas e voltadas para as populações mais afetadas”, afirma Menezes.

Mesmo com a pandemia ainda em curso, o economista argumenta que é necessário começar a tomar atitudes que igualem as oportunidades dos estudantes, desde o saneamento básico até o acesso à internet. “É preciso se precaver, para que o próximo choque, que pode ser uma recessão ou outra pandemia, não provoque um aumento tão grande das desigualdades”, diz.

A habitação é tratada no capítulo “Políticas de Moradia em Momentos de Crise: A Centralidade do Aluguel”, assinado por Firpo e a coordenadora do Núcleo de Questões Urbanas do Centro de Regulação e Democracia do Insper, Bianca Tavolari. Segundo ela, as falhas no setor habitacional brasileiro também se tornaram rapidamente visíveis durante a pandemia, com famílias inteiras se encontrando subitamente na posição de não conseguir pagar o aluguel, correndo o risco de serem despejadas em pleno período de isolamento social.

Para tentar estabelecer regras transitórias dos contratos de locação durante a crise sanitária, começou a tramitar já em março do ano passado, nas duas casas do Congresso, o projeto de lei 1.179/20, sancionado em junho como lei 14.010/20. Entre outras medidas, a lei incluía a suspensão de despejos até 30 de outubro; o veto presidencial à suspensão foi derrubado em agosto.

“O que ficou claro, ao longo desse processo, é que faltavam aos deputados e senadores os dados para tomar decisões na tramitação do projeto de lei. Não havia um cenário, uma fotografia de quem paga e recebe aluguel no Brasil”, afirma Bianca. Diante da escassez dos dados, sua equipe se dedicou a traçar o perfil das pessoas que têm gastos ou rendas de aluguel, por meio da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2018. O que a pesquisa encontrou foi mais um campo em que a desigualdade se agrava na pandemia.

“A maior parte das famílias não mora de aluguel no Brasil, mas o grupo que recebe dinheiro de locação se concentra entre as mais ricas, enquanto quem compromete parte da renda pagando aluguel são as famílias de renda mais baixa”, aponta a autora.

“No Brasil, quando se pensa em políticas de habitação, em geral elas dizem respeito à construção de moradias. Mas é preciso também pensar nas pessoas que não são proprietárias”, afirma Bianca, lembrando que a pandemia introduziu um contingente novo de vulneráveis, na figura das famílias que podiam pagar aluguel e se veem subitamente impossibilitadas de cumprir os compromissos.

Para enfrentar outras crises, além da suspensão temporária de despejos, Bianca recomenda a criação de um fundo de aluguéis, que possa ser acionado em momentos de crise aguda. O fundo teria como função não só evitar que famílias sejam despejadas, mas também ajudar pequenos proprietários que têm os aluguéis como principal fonte de renda.



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