Pular para o conteúdo principal

A depressão do fundador da Companhia das Letras

O relato é corajoso. Fala de ataques de fúria, de cortes que exigiram atendimento médico, de crises de choro, de remédios errados e de uma libido complexa, na qual a ejaculação não era fruto do prazer. Essa evisceração, como uma longa sessão de psicanálise, é o cerne do livro de memórias familiares do editor Luiz Schwarcz, “O Ar que Me Falta - História de uma Curta Infância e de uma Longa Depressão”. O livro (200 págs., R$59,90) acaba de sair pela Companhia das Letras, editora que ele fundou em 1986, e é, sobretudo, a exposição do sofrimento que está nos bastidores das realizações de um empresário de sucesso. Schwarcz, de 65 anos, assume que decidiu abrir a caixa-preta, escreve Maria da Paz Trefaut para o Valor de sexta, 5/3. Continua a seguir. 


“Os assuntos mais delicados da minha vida dizem respeito aos momentos de depressão e aos poucos momentos de fúria que, ainda bem, há muitos anos não acontecem. Estou bem controlado”, diz. No entanto, o editor relata que às vezes acontece de ele bater na parede, chutar uma cadeira, destruir um aparelho de som. “Não há nada mais difícil do que expor as coisas tratadas nesse livro. Essa caixa-preta foi totalmente aberta, e todo o mundo pode ouvir a gravação.”

Foi na estação de esqui de Cervinia, no Vale de Aosta, nos Alpes italianos, em janeiro de 2020, que ele tomou a decisão de escrever. Começou nos Estados Unidos um pouco antes da pandemia e, depois, o enclausuramento propiciou a continuidade com fôlego. “Comecei a escrever 16 horas por dia. Escrevia e dormia.”

Se ainda havia alguma dúvida sobre a decisão de contar sua história, ela se dissipou durante um almoço com o amigo Drauzio Varella. “Nossa, você tem que fazer esse livro”, disse o médico e escritor. “Vai ser muito bom as pessoas saberem que por trás de uma história como a sua tem muito sofrimento.” Durante o processo de escrita e em conversas com sua ex-psicanalista, Schwarcz se deu conta de que estava escrevendo para ele mesmo.

“Eu quero ajudar, e parece, pelas primeiras reações, que as pessoas estão se sentindo ajudadas, mas o que eu queria mesmo era transformar uma parte do sofrimento da minha vida numa narrativa”, afirma.

Schwarcz diz que vive de ajudar as pessoas a contar histórias, a fazer literatura. “Já o escritor que existe atrás do editor eu contesto muito”, afirma. Ele diz que já pensou em ser ficcionista, mas apenas agora acredita ter encontrado uma forma mais propícia para sua falta de imaginação literária. “Não vivo de fazer livros? A literatura não é de alguma forma o encontro de duas vulnerabilidades: de quem escreveu com quem está lendo? É o campo onde o imprevisto pode tomar conta da linguagem”, diz.

“O Ar que Me Falta” toca em temas contemporâneos, que ganharam mais destaque ainda em tempos de confinamento: a depressão e a bipolaridade. Embora o autor defina seu distúrbio como leve, ele não escapa do estigma associado às doenças mentais.

“A depressão é muito cruel, torna as pessoas disfuncionais, com dificuldade de vida social. Meu caso é leve, mas trouxe muito sofrimento. Um remédio errado me levou a algo que não chamo de uma tentativa de suicídio, mas a me cortar, a chamar atenção, a perder totalmente o controle pelo estado maníaco a que cheguei.”

Tudo isso está no livro. Mas o ponto de partida de Schwarcz é uma dupla culpa derivada de um momento trágico na história da família. Foi quando seu avô (Luiz) e o pai (André) estavam num trem, a caminho do campo de extermínio de Bergen-Belsen, na Hungria. O trem enguiçou, momentaneamente, e Luiz mandou o filho fugir: quase o empurrou para fora do vagão. André se salvou e carregou a culpa por ter obedecido, em vez de ter seguido para morrer ao lado do pai. Já o autor cresceu presenciando a angústia do pai e sempre se culpou por não ter conseguido fazê-lo feliz.

Há vários anos Schwarcz pensava contar a história do pai e já havia tentado várias formas ficcionais. A crise depressiva que teve aos 43 anos, desencadeada por inúmeros fatores, o levou a misturar a história da família com a sua. Hoje ele diz que tudo faz sentido. “Caminhar ao lado da arrogância que eu desenvolvi desde muito cedo, chegar no mundo empresarial e continuar com essa arrogância, seja com relação aos funcionários ou à família, é certeza de que algum problema vai surgir. A arrogância é um pedestal que, quando você sobe, não percebe que está indo para o abismo”.

No livro, ele faz reiterados agradecimentos à família, especialmente à mulher, Lilia Moritz Schwarcz, historiadora, antropóloga e escritora que fundou com ele a Companhia das Letras. “Minha família foi muito legal de aguentar tanta arrogância. Eu sabia tudo, resolvia tudo.”

Mas essa não é, de certa maneira, a síndrome do empresário, do empreendedor? “Eu acho que sim”, responde. Para Schwarcz, o sucesso é uma ilusão quando você se coloca no centro e não leva em conta o que o determinou. “Não existe sucesso individual”, afirma. “Existem méritos, mas ele é sempre uma obra coletiva.” Ele cita como exemplo um esportista que corre uma prova de 100 metros e que depende de treinador, nutricionista, massagista. “O sucesso tende a fazer com que as pessoas pensem apenas em si. Aí se iludem.”

Schwarcz atribui o sucesso da Companhia das Letras ao acaso e ao passado. “Tive o mérito de apostar numa editora de qualidade radical e de perceber que aquilo era possível naquela hora. Posso falar: que sacada genial tive. Mas não é”, diz. Ele conta que aprendeu o ofício na editora Brasiliense, com colegas e editores como Caio Graco da Silva Prado (1931-1992), com quem trabalhou durante anos. “E tudo isso faz parte determinante do meu sucesso na Companhia. Se a gente quiser explicar o sucesso de maneira fácil, é um passo para o precipício.”

No livro, ele reconhece a importância do judaísmo em sua vida, apesar de na adolescência não gostar de frequentar a sinagoga ao lado do pai. Hoje é ateu e se entrega ao rito. “Não acredito em Deus, mas rezo porque isso me deixa perto do meu pai”, conta. Schwarcz afirma ser judeu e ateu ao mesmo tempo. “Acredito na cultura judaica, me identifico com as festas, gosto da minha família ter tido esse orgulho porque acho que o judaísmo tem contribuições importantes para a cultura ocidental.”

Schwarcz não gosta de fazer generalizações sobre a depressão e controla a sua com exercícios, corridas, muita música, leituras, estabilizadores de humor e antidepressivos. “Tem muita gente que consegue parar a medicação, mas se não houver a humildade de reconhecer que você precisa de ajuda ou de terapia ou de remédio, ou de ioga ou de esporte, aí ela não te larga nunca mais. Ela tem cura, mas vai estar sempre no fundo da vida. Nem dá para você esquecer que teve um episódio.”

Escrever é terapêutico também, afirma, mas no limite do perigo. “Fico muito em mania na hora de escrever. Agora com o lançamento, então, coitada da minha família... Estou muito agitado. Tenho que aumentar os ansiolíticos, ainda não estou fazendo isso”, diz o editor, rindo. “Mas estou chegando no limite. No meu caso, a comparação entre a excitação e o desânimo pende muito para a excitação.” Livros sobre bipolaridade e depressão nunca estiveram em sua mesa de cabeceira. Tentou alguns, mas tem muita dificuldade em ler e avançar. “Já basta viver”.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe