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E se a Marta fosse a governadora?

O que vai abaixo é mais um texto do autor destas Entrelinhas para o Observatório da Imprensa. Em primeira mão para os leitores do blog.

A imprensa de São Paulo não gosta de ser chamada de "tucana" e reage com grande indignação à acusação. Mas protege o governador José Serra (PSDB) até mais não poder. Senão vejamos.

Abaixo estão os títulos e textos de reportagens da Folha Online e da Agência Estado sobre o mesmo episódio, um assassinato em São Paulo. Vale a pena passar pelas matérias antes de seguir com o comentário.

Agência Estado
Mulher morre após ser baleada em suposta tentativa de assalto


A mulher atingida por dois disparos na cabeça nesta quinta-feira, 2, em uma suposta tentativa de assalto no Alto de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, morreu às 18h10. Segundo o Hospital Panamericano, ela sofreu uma parada cardiorrespiratória durante a cirurgia a que era submetida desde as 15h30. Os médicos tentaram reanimá-la, mas não obtiveram sucesso.


O crime ocorreu por volta das 14 horas. Dois homens numa motocicleta azul abordaram a vítima na Rua Antônio de Gouveia Giudice. O que estava na garupa agarrou a bolsa dela, mas a mulher teria se recusado a soltá-la. O criminoso atirou e, em seguida, a dupla fugiu em direção à Marginal do Pinheiros.

A Guarda Civil Metropolitana levou a mulher ao hospital, onde ela deu entrada às 14h30. Uma hora depois, os médicos decidiram submetê-la a uma neurocirurgia. Quatro testemunhas foram ouvidas no 14.º Distrito Policial, de Pinheiros. Como os bandidos levaram a bolsa da vítima, ela não foi identificada. De acordo com a SSP e o hospital, a mulher tem cerca de 1,60 metro de altura, é jovem, magra e loura. Até esta noite, ninguém havia sido preso.

Folha Online
Morre mulher baleada em assalto na zona oeste de São Paulo

Uma mulher morreu após ser baleada na cabeça na tarde desta quinta-feira em um assalto na rua Antônio de Gouveia Giudice, na altura do número 120, no bairro Alto de Pinheiros, zona oeste da cidade de São Paulo. O crime ocorreu na mesma rua onde o governador José Serra (PSDB) tem uma casa, onde morava até ser eleito.

A mulher --cuja identidade não foi revelada-- foi socorrida pela Guarda Civil Municipal e levada ao Hospital Panamericano. Segundo a assessoria do hospital, ela passou por uma cirurgia na cabeça, mas não resistiu aos ferimentos e morreu.

De acordo com a SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo), dois homens em uma moto a abordaram para roubar a bolsa da vítima. Segundo o boletim de ocorrência, a mulher não quis entregar a bolsa e um dos homens disparou duas vezes contra ela.

Até as 20h30 de hoje, ninguém havia sido preso.

É mesmo impressionante. O crime ocorreu na rua Antonio de Gouveia Giudice, "onde o governador José Serra tem uma casa", segundo a matéria da Folha Online. A Agência Estado nem sequer informa este "pequeno detalhe". Para começar, Serra não "tem uma casa" na tal rua, trata-se da residência na qual mora a primeira-dama Mônica Allende, que não se mudou para o Palácio dos Bandeirantes com o marido. Ou seja, é mesmo a casa do governador do Estado.

O leitor pode fazer um exercício de imaginação bastante simples para perceber o absurdo do texto e dos títulos aplicados pelos portais dos dois jornalões: fosse hoje Marta Suplicy a governadora e tivesse o crime ocorrido na rua Grécia, onde morava a ex-prefeita, qual teria sido a reação da imprensa? "Mulher morre assassinada na rua de Marta" é o título mais leve que este Observador pode imaginar. E se o repórter ou editor da Agência Estado deixasse passar a informação de que Marta "tem uma casa" na rua do crime, certamente um, outro ou ambos perderiam o emprego....

No fundo, Marta tem muita razão de reclamar da mídia, que teve um comportamento desastroso no episódio da separação da ex-prefeita e do senador Suplicy. Já Serra jamais poderá dizer o mesmo. Nem um assassinato na rua onde mora a sua mulher é noticiado como tal, aparece nas chamadas apenas como "um crime na zona Oeste" da cidade. Da mídia, Serra não pode reclamar...

Comentários

  1. Essa imprensa brasileira já está no buraco faz é tempo.

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  2. Acho que o título que o imprensalão ia estampar, em letras garrafais seria: "Marta cria nova taxa, e mulher é assassinada na rua onde mora a governadora."

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  3. Luiz, pensei numa coisa: acho que se os jornais dessem esse detalhe, mesmo assim isso poderia não ter maiores consequências. Prá que se pudesse observar um tratamento "equânime", eles teriam que colocar todos os dias na manchete da primeira página, durante meses, martelando sem descanso. Se fosse Marta, teríamos inevitáveis insinuações e/ou conduções, que levassem os leitores a achar que o assassinato tivesse a ver com o mensalão ou dólares de Cuba. Aí, sim.

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  4. Hummm... Eu já acho que seria algo na linha: "Gravações revelam que PT está por trás de crime no 'caso Marta'", acompanhada de uma entrevista de meia página do Gilmar Mendes. E, na linha fina, leríamos: "Governadora quer saber se mulher sem documento era casada e tinha filhos"

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  5. Ah, podia vir uma manchete assim: "Polícia de Marta não tem pistas do assassinato", com o lide: "Até crime defronte a casa da Governadora continua sem solução".

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