Pular para o conteúdo principal

A série Cursed refaz a lenda do rei Arthur com cores feministas

Isabela Boscov resenha, na edição desta semana da revista Veja, a série que estreou na Netflix nesta semana, vale a leitura. Íntegra abaixo.
 
Em tese, os dez episódios de Cursed: A Lenda do Lago (Cursed, Estados Unidos, 2020), já na Netflix, revisitam de forma inusitada as lendas arturianas: seu eixo não é Arthur, que extraiu da pedra a espada Excalibur e assim se tornou o rei da Inglaterra, mas Nimue ou a Dama do Lago, a divindade a quem cabe a custódia da lâmina. Onde se escreve “releitura”, porém, melhor seria dizer “gato e sapato”. Há muito mais autenticidade, compreensão histórica e emoção na sátira Monty Python em Busca do Cálice Sagrado ou no criticado Rei Arthur: A Lenda da Espada, de Guy Ritchie (isso para não falar do soberbo Excalibur, de John Boorman), do que nesta colaboração do reverenciado quadrinista Frank Miller com o roteirista Tom Wheeler. Pegando carona nas causas e afeições do público millennial, a dupla apresenta Nimue (Katherine Langford) como uma jovem rebelde (claro), hostilizada entre seu povo mágico por ter algo de demoníaco em sua origem. Perseguidos por monges sanguinários, porém, esses seres primordiais terão de reconhecer Nimue como sua rainha e sua única chance de salvação.
Nesta reimaginação — maneira de dizer —, Arthur (Devon Terrell) é um espadachim sem honra, Morgana (Shalom Brune-Franklin) é freira e Merlin (Gustaf Skarsgard) perdeu seus poderes mágicos; outros tipos clássicos entram na história com nomes diferentes, porque alguém achou que seria divertido ter de adivinhar quem é Percival ou Lancelot (não é). Afora Skarsgard e duas outras jovens atrizes — Emily Coates como a noviça Iris e Lily Newmark como a avoada Pym —, o elenco carece de carisma. Mas os atores são de etnias diversas, o girl power é exaltado e corre-se muito para lá e para cá. Pena que se saia do nada e se chegue a lugar nenhum.
Assim, a busca por uma série de fantasia que possa ocupar um pedaço sequer da lacuna deixada por Game of Thrones prossegue a esmo, sem que se pareça atinar com as razões para o êxito dos criadores David Benioff e D.B. Weiss — a coesão interna, o apuro dramatúrgico, a escolha criteriosa do elenco. GoT tornou desconhecidos em astros; séries como a irregular mas até simpática The Witcher, com Henry Cavill, e esta insípida Cursed acham que astros são uma substituição ao trabalho duro. Embora seja muito apreciada na sua faixa etária por 13 Reasons Why, porém, Katherine Langford não é nenhuma Emilia Clarke. Sua Nimue não consegue domar nem a própria cara de petulante e/ou contrariada, que dirá dragões.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe