tag:blogger.com,1999:blog-231981092024-03-07T22:52:33.452-03:00Entrelinhas<b>Cultura, Mídia & Política por Luiz Antonio Magalhães</b>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.comBlogger3566125tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-91349989428240216252021-11-07T15:32:00.003-03:002021-11-07T15:32:58.942-03:00Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série<p>Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman </p><p>Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis.</p><p>Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva.</p><p>Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “convidados” a uma intensa estadia sob a promessa de limpeza espiritual e desconstrução traumática severa baseada no confronto interior.</p><p>Mas este não é um SPA qualquer. Ao apostar em técnicas questionáveis, que variam de alucinógenos a sessões de imersão filosófica coletiva, a sensitiva curandeira de origem russa esconde segredos que podem destruir a reputação de “Tranquillum”, um lugar mais agitado do que parece – psicodélico e sombrio demais para ser vendido como um resort exclusivo e luxuoso de cura instantânea no mais clássico “american way”.</p><p>Sob pena de qualquer spoiler, a dica mesmo é fazer como os clientes (ou pacientes?) de Masha assim que entraram na imersão cabalística do projeto: desligar os celulares e mergulhar no desconhecido sem prever o resultado. É possível que você também se liberte do mundo lá fora durante os oito bem editados episódios da série, com doses cavalares de crítica ao modelo frenético de vida atual. A passagem é de ida, só não se esqueça de voltar.</p><p><br /></p><p>O que mais você precisa saber</p><p>*Nine Perfect Strangers é baseada no livro homônimo de Liane Moriarty, mesma escritora do best-seller “Big little lies”, tema que deu origem à série da HBO de 2017, também estrelada por Nicole Kidman e elaborada por David E. Kelley. Os dois repetem a parceria em Nove Estranhos Perfeitos, que conta ainda com estrelas como Melissa McCarthy, Luke Evans, Tiffany Boone, Bobby Cannavale, Michael Shannon, Regina Hall, e Samara Weaving. David E. Kelly.</p><p>Veja trailer oficial: https://www.youtube.com/watch?v=QvqujH6boEI</p><p> (Por Rodrigo Scolatempore em 07/11/21)</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiJpgFe3z6pXSZlcOMfVdS7JuCBCcq1jA5zkRj30Tn1c5Wr3ogRjn5K4FLD5cAvZORJpyIsY6yKS4dQmNuJk18BirrN3L-F59cmXU2oV1cG6b78gPdoIqjeSy44kaIcIUS-98Y4/s2048/d61542f499e1b35f04b57620a42d5c3e93115d956b544504696bd2fb5d9b1fda._RI_V_TTW_.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1536" data-original-width="2048" height="480" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiJpgFe3z6pXSZlcOMfVdS7JuCBCcq1jA5zkRj30Tn1c5Wr3ogRjn5K4FLD5cAvZORJpyIsY6yKS4dQmNuJk18BirrN3L-F59cmXU2oV1cG6b78gPdoIqjeSy44kaIcIUS-98Y4/w640-h480/d61542f499e1b35f04b57620a42d5c3e93115d956b544504696bd2fb5d9b1fda._RI_V_TTW_.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-81489624730531198932021-11-07T15:24:00.006-03:002021-11-07T15:26:17.953-03:00Fim da pandemia e as perspectivas para 2022<p> A Newsletter da LAM Comunicação está de volta. Abertura da news abaixo.<br /><br /><br /></p><p>Ao contrário do que ocorreu nos EUA e Europa, o Brasil até agora não foi afetado pelas novas variantes do coronavírus, felizmente. A cada semana, a média móvel de mortes e novos casos vem diminuindo e diversos municípios já flexibilizaram os protocolos mais rígidos, inclusive o uso de máscaras ao ar livre. Claro que a pandemia ainda não terminou, é preciso estar atento às tendências no mundo, mas o fato é que neste momento os brasileiros estão retomando as atividades presenciais com mais segurança, inclusive pelo avanço da vacinação. São Paulo, por exemplo, vacinou mais do que os EUA e as nações mais populosas da Europa, tendo requisitado autorização para iniciar a vacinação de crianças entre 5 e 11 anos de idade. </p><p>E qual será o impacto desta melhoria para o país? Na prática, a retomada da economia deve ocorrer lentamente, segundo as últimas projeções do mercado financeiro, até porque a situação se deteriorou muito neste ano. Inflação alta, juros apontando para a casa de dois dígitos, dólar nas alturas e uma taxa de desemprego obscena fazem parte do cenário atual. </p><p>As atuais projeções dos grandes bancos brasileiros indicam crescimento negativo em 2022, mesmo com a base bastante frágil deste ano, o que significa um grande problema para quem está no poder e deve tentar a reeleição. O presidente Jair Bolsonaro certamente sabe disto, e tem apostado em radicalizar seu discurso, a fim de manter sua base de apoiadores fiéis. Apesar de todos os problemas que vem enfrentando, o presidente segue com aprovação de cerca de 25% dos brasileiros, o que lhe garante uma vaga no segundo turno. A outra vaga, de acordo com as pesquisas, é do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que em algumas enquetes fica próximo de levar a eleição já no primeiro turno. </p><p>Claro, ainda há falta muito tempo para o pleito e é possível que uma terceira via se viabilize até outubro do próximo ano, mas esta hipótese também é pouco provável em função da quantidade de postulantes à tal terceira via. A esperança do presidente Bolsonaro é justamente disputar o segundo turno contra Lula, apostando no antipetismo, sentimento que decidiu a eleição de 2018, mas que talvez já não seja mais tão forte em 2022. (por Luiz Antonio Magalhães em 7/11/21) </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhC3NqI8MP84wG3M3yxAd3oDm8z3WNNYndd8fb6qUuvJzEYdnL0MhcT2-G640yrhXfzbhbvG0wq7Xv-2lBFVQqzf1n-F0QXhybY7heMwDmp9q0Hp02EcgDtipVI5jcyXpDMvkEX/s906/9wqqn0s7hbyhw4ffeu3gduco1.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="509" data-original-width="906" height="360" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhC3NqI8MP84wG3M3yxAd3oDm8z3WNNYndd8fb6qUuvJzEYdnL0MhcT2-G640yrhXfzbhbvG0wq7Xv-2lBFVQqzf1n-F0QXhybY7heMwDmp9q0Hp02EcgDtipVI5jcyXpDMvkEX/w640-h360/9wqqn0s7hbyhw4ffeu3gduco1.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-46816346788422243702021-07-25T14:32:00.002-03:002021-07-25T14:32:35.754-03:00 Entre o vírus e o vazio, o esporte<p>Nunca uma edição dos Jogos Olímpicos esteve tão fadada a um ambiente fantasmagórico quanto a que foi aberta nesta sexta-feira em Tóquio, com um ano de atraso, sem público nos estádios nem turistas na cidade. A pandemia não foi capaz de impedir o principal evento do calendário esportivo mundial. Mas não faltaram vozes contrárias ao evento ―70% da população japonesa se opunha, segundo as pesquisas, num país de 126 milhões de habitantes onde apenas 21% receberam a pauta completa da vacina contra covid-19. Tampouco faltaram patrocinadores em retirada, caso da Toyota. Apesar da maré ruim, o Governo nipônico e o COI seguiram adiante com um projeto orçado em mais de 80 bilhões de reais. O organismo olímpico garante para si um pagamento aproximado de 18 bilhões, enquanto o Japão estima prejuízos de cinco bilhões. Essa cifra, no entanto, dispararia em caso de cancelamento, pois seria preciso assumir as multas contratuais correspondentes. “Hesitamos a cada dia”, chegou a dizer nos últimos dias o alemão Thomas Bach, presidente do COI. Valei a leitura do editorial do El País sobre os Jogos Olímpicos deste ano, continua a seguir.</p><p><br /></p><p>A preocupação cresceu, primeiro, quando Tóquio proibiu a entrada de visitantes estrangeiros, e mais tarde ao vetar inclusive os espectadores locais nos estádios, uma decisão muito dura, porém prudente em termos sanitários. Uma Olimpíada nunca vista. É verdade que todas as modalidades já vêm sofrendo desde a eclosão da pandemia em 2020, mas causa desolação a perspectiva de uns Jogos sem o motor emocional do público, sem paixão nas arquibancadas. Custa imaginar o desfile inaugural com o concreto exposto. E o que será do campeão sozinho no pódio? E as voltas olímpicas no estádio? Os atletas estão conscientes do vazio e muitos já proclamaram sua estratégia: chegar o quanto antes, participar o quanto antes e ir embora o quanto antes. E não só pelo desencanto de competir sem a inestimável torcida do público, mas sim pelos infinitos entraves derivados da pandemia. Controles e mais controles numa vila olímpica transformada em uma tediosa e labiríntica bolha para mais de 11.000 atletas, tudo para que um exame positivo não os obrigue a renunciar ao sonho olímpico, para muitos o de uma vida inteira.</p><p>O preâmbulo já foi marcado por problemas. O chefe do comitê organizador deixou o cargo por causa de afirmações machistas; o da cerimônia inaugural, quando vieram à tona antigos comentários seus, inaceitáveis, sobre o Holocausto; houve protestos de atletas pelas dificuldades em conciliar os cuidados com seus bebês. Seu desenrolar é um desafio colossal para o Governo do Japão. Uma nova onda viral em decorrência do evento olímpico representaria para ele um golpe de impensáveis consequências.</p><p>Começam, portanto, os Jogos Olímpicos. Será uma “telempíada”, ressaltando a cada dia a célebre alegoria de Mario Benedetti: “Um estádio vazio é o esqueleto de uma multidão”. Será triste, mas dentro do esqueleto estarão eles: os atletas. Até nessas condições, poderão inspirar e emocionar a grandes massas ―de todas as idades―com suas façanhas, com seus valores de abnegação, companheirismo, jogo leal. Que a habilidade dos esportistas e a luz da chama olímpica consigam compensar um pouco deste mundo pesaroso e escuro.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg3QriIRbAuWHgchut6P3xlz8OrWCZYt5v3WS8D5YgUqfsV5Yb__lyRgUrX7cbv0L8Wo4ukRuv-yZDG_KFaWZjhNmrGRvOLe3Hfs_7fNjKzK0y7B40Q8IKhkGRSB-z4Qnhg4EaZ/s1960/3FHP7JDGJ5BIJEWQAEUZI36HLQ+%25281%2529.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1102" data-original-width="1960" height="360" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg3QriIRbAuWHgchut6P3xlz8OrWCZYt5v3WS8D5YgUqfsV5Yb__lyRgUrX7cbv0L8Wo4ukRuv-yZDG_KFaWZjhNmrGRvOLe3Hfs_7fNjKzK0y7B40Q8IKhkGRSB-z4Qnhg4EaZ/w640-h360/3FHP7JDGJ5BIJEWQAEUZI36HLQ+%25281%2529.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-54303046506010555602021-07-25T13:53:00.000-03:002021-07-25T13:53:00.504-03:00 Temos menos lembranças porque estamos olhando para o celular<p>“Somos nossa memória, somos esse quimérico museu de formas inconstantes, esse montão de espelhos rompidos.” É difícil encontrar uma definição melhor da memória do que a oferecida por Jorge Luis Borges neste poema. Lembrar, uma função essencial do nosso cérebro, é também comprovar a fragilidade da nossa memória. Quão equivocada pode ser, quão vulnerável a contaminações a partir do que é lembrado por outras pessoas, ou mesmo quão capaz de elaborar falsas lembranças, como demonstrou a psicóloga Elizabeth Loftus. Os erros da memória são a norma e não a exceção, porque as experiências da nossa vida não ficam gravadas na nossa mente, nem o passado pode ser rebobinado sem mais, mas ficam armazenadas em múltiplos fragmentos e, com o passar do tempo, estes fragmentos confusos podem se recombinar de uma maneira diferente de como os eventos ocorreram em seu momento. Sem atenção não há memória. E em um mundo dominado por infinitas distrações tecnológicas é pertinente perguntar se o rastro das nossas lembranças será mais leve. Nosso já frágil arquivo do passado perderá dados? Julia Shaw, pesquisadora de Psicologia e Ciências da Linguagem da University College de Londres, aborda a questão em The memory illusion (a ilusão da memória, sem edição no Brasil). Um livro em que revê, do ponto de vista neurológico, bioquímico e —sobretudo— psicológico, os mecanismos que nos permitem recordar e as falhas da nossa memória, escreve Lola Galán em reportagem publicada dia 22/7 no El País. Continua a seguir.</p><p><br /></p><p>Para começar, caímos no erro da multitarefa. Acreditamos que é possível manter uma conversa doméstica enquanto mandamos mensagens de WhatsApp pelo celular e damos uma olhada nas notícias no tablet. Mas nosso cérebro não está preparado para fazer várias coisas ao mesmo tempo. O neurologista e pesquisador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) Earl Miller estuda há anos como os humanos modernos são especialistas em passar vertiginosamente de uma tarefa para outra, ao invés de lidar com várias tarefas simultaneamente. E esse salto entre diferentes atividades acarreta um “custo cognitivo”. Em outras palavras, isso nos leva a ter um desempenho pior nas tarefas e tem um impacto negativo na nossa habilidade para recordar coisas mais tarde, aponta Julia Shaw em seu livro.</p><p>Margarita Diges Junco, professora de Psicologia da Memória e codiretora da Unidade de Psicologia Forense Experimental da Universidade Autônoma de Madrid (UAM), sabe muito bem disso. Nas experiências que realiza para verificar a solidez dos depoimentos em casos judiciais, viu como, ao realizar dois exercícios ao mesmo tempo, a memória dos participantes se ressente. “Além de olhar as imagens em uma tela, pedimos que se ocupem de outra tarefa que não envolve a visão, mas a mão, porque se trata de desenhar de cruzes e linhas”, explica por telefone. “Na hora de lembrar o que foi visto, o resultado é que mencionam coisas que não estavam na filmagem, inclusive um ônibus ou uma fonte inexistentes.”</p><p>E o que dizer da distração que representam os smartphones? “As pessoas tendem a prestar menos atenção no que as rodeia porque estão atentas ao celular. Isso equivale a ter menos lembranças dos atos de sua vida”, explica Shaw por e-mail. “E, além disso, assim externalizamos nos celulares parte da nossa memória. Várias pesquisas demonstraram que é menos provável que nos lembremos de detalhes complexos do que fizemos, ou de onde estivemos, se nos dedicarmos a fotografá-lo. Não estou dizendo que você não deva tirar fotos, mas é preciso se esforçar para prestar atenção e processar o que nos rodeia. Do contrário, você pode descobrir que não sabe por que tirou uma determinada foto nem quem era a pessoa sentada ao seu lado.”</p><p>Margarita Diges, da UAM, também destaca os riscos de desconcentração que os celulares proporcionam. “Quando você está dirigindo, mesmo olhando para a estrada, se você atende uma ligação porque é importante, a atenção que você presta à ligação está tirando a atenção no que entra pelos olhos... a estrada.” Um estudo da Universidade de Utah realizado em 2006, citado por Shaw em seu livro, comparou o comportamento de motoristas bêbados com o daqueles que falam em seus celulares. Concluiu que, mesmo utilizando o viva-voz, o risco de sofrer acidentes é semelhante nos dois grupos.</p><p>A internet também afeta nossa memória. Graças à rede temos motores de pesquisa que proporcionam acesso a uma vasta quantidade de informação e temos veículos de comunicação imediata: as redes sociais. Brian Clark, pesquisador em educação da Universidade Western Illinois, concluiu que, como resultado dessa conexão planetária, nossa memória está se transformando. “A distinção entre a lembrança pública e a lembrança privada esvaiu-se até desaparecer”, argumentou em um artigo de 2013. O que circula nas redes passa a ser a nossa lembrança.</p><p>É de se perguntar se essa memória coletiva estará menos sujeita aos erros do que a memória privada. E a memória histórica? Neste caso, existe um limite para o erro porque estamos diante de dados históricos reais, precisa Margarita Diges. “Mas se você olhar para momentos históricos como a Transição [da ditadura franquista na Espanha à democracia], verá que agora são recriados de uma maneira que talvez não seja como os vivemos. O que eu lembro se adequa ao que vivi ou a uma mistura entre o que vivi e o que li, porque estamos às voltas com a nossa história o tempo todo? Eu já não sei. O que está claro é que a experiência privada desses fatos é tingida pela lembrança coletiva, porque é muito difícil ir contra a corrente”.</p><p>E é muito mais difícil quando a memória pode ser facilmente refrescada graças ao Google. O que não seria prejudicial em si, observa Shaw, embora produza mudanças na nossa forma de lembrar. Entre outras coisas porque não precisamos mais recordar pequenos detalhes: estes estão armazenados em nosso cérebro externo, que é a internet. “Em termos de aprendizagem, a memória é ligeiramente menos importante hoje, enquanto a habilidade de identificar informações baseadas em evidências o é cada vez mais”, diz. Einstein já disse: “O que cabe no bolso, não guarde no cérebro”.</p><p>Nosso mundo hiperconectado também facilita o roubo de lembranças. O livro de Julia Shaw apresenta várias experiências que demonstram o quanto é comum o fato de se apropriar inadvertidamente das lembranças relatadas por outras pessoas. Algo que, enfatiza Shaw, sempre existiu, principalmente no âmbito familiar: um núcleo que compartilha memórias comuns, e onde é mais fácil que as lembranças que um dos membros relata, com o tempo, sejam apropriadas por outro. É que esses “espelhos rompidos” de que falava Borges tendem a se recompor, embora seja à custa de não refletir a realidade.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj4IGkBTbyDpI_yClWc5kC4qkAeICsK1eVyAjwsRdkAeSK8hJOu5kz9200LmS4c0TXVDSAbS0dSD_o7YdWp5VbouWZhgcyq6ElYNzonfeEPIabFgcGNrhbXYroxW6SDuQ72XrTl/s1960/5HAWEL6FWVEONF4R7PMQEKJZ7A.webp" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1100" data-original-width="1960" height="360" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj4IGkBTbyDpI_yClWc5kC4qkAeICsK1eVyAjwsRdkAeSK8hJOu5kz9200LmS4c0TXVDSAbS0dSD_o7YdWp5VbouWZhgcyq6ElYNzonfeEPIabFgcGNrhbXYroxW6SDuQ72XrTl/w640-h360/5HAWEL6FWVEONF4R7PMQEKJZ7A.webp" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-55702025183868812392021-07-24T20:43:00.003-03:002021-07-24T20:43:18.004-03:00 No pior clube<p>O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de todas as nações do Ocidente, escreve João Gabriel de Lima no site da revista Piauí, em texto publicado na quinta, 22/7. Continua abaixo.</p><p><br /></p><p>Numa era pré-Spotify, a música vinha de fitas K-7. Ao recordar o episódio, a escritora observa que os poloneses não conheciam as canções que os norte-americanos dançavam, e vice-versa. Passaram-se vinte anos, basta um clique para saber as paradas de sucesso em um país, mas algumas diferenças se aprofundaram. “Quase duas décadas depois, eu atravessaria a rua para evitar algumas das pessoas que compareceram à minha festa de Ano-Novo”, escreve Applebaum no livro. “Elas, por sua vez, não somente se recusariam a ir à minha casa como ficariam constrangidas em admitir que já estiveram lá. De fato, metade das pessoas presentes à festa já não fala com a outra metade. O distanciamento é político, não pessoal.”</p><p>A divisão se refletiu nas eleições polonesas de 2020. O país estava polarizado. De um lado, Andrzej Duda, apoiado pela extrema direita do partido Lei e Justiça, tentava a reeleição. De outro, a centro-direita e a centro-esquerda apoiavam Rafał Trzaskowski, do partido Plataforma Cívica. “Em plena pandemia, o coronavírus não foi o assunto principal da eleição, por incrível que pareça”, disse Applebaum à piauí, numa conversa por Zoom desde Washington. “Duda conseguiu que o assunto central do debate fosse o casamento gay. Colocou-se como defensor da família tradicional e dos valores religiosos. Trzaskowski não conseguiu mudar de assunto na campanha – e perdeu a eleição.” Foi por muito pouco, menos de 500 mil votos num colégio eleitoral de mais de 20 milhões de eleitores – 51,03% contra 48,97%.</p><p>“Uma das coisas mais importantes para um candidato de centro-direita ou de centro-esquerda que esteja combatendo um populista é mudar de assunto. Devemos fugir dos temas da guerra cultural. Em países como a Alemanha é a imigração. Na Polônia é o casamento gay”, disse ela. Segundo a escritora, existem duas Polônias, uma tradicionalista e sensível a apelos de extremistas de direita, e outra moderna, sofisticada e cosmopolita, avessa ao radicalismo. “Apenas por isso a Polônia ainda não se tornou uma ditadura. Duda não consegue controlar um empresariado diversificado, nem meios de comunicação que pertencem, em larga medida, a grupos estrangeiros, alemães e norte-americanos.”</p><p>Alguns jornais poloneses, no entanto, já sucumbiram ao governo que lhes compra anúncios. Entre os convidados do Réveillon do ano 2000, dois hoje trabalham no jornal Gazeta Polska, de Varsóvia. O veículo apoia o governista Lei e Justiça. Segundo Applebaum, o partido passou muito tempo atacando imigrantes islâmicos – ainda que praticamente inexistam imigrantes islâmicos na Polônia – e, agora, investe contra os homossexuais. Numa de suas edições recentes, a publicação distribuiu aos leitores um adesivo com os dizeres: “Área livre de LGBTS.” O Lei e Justiça faz também um discurso antissemita de viés conspiratório. Diz que forças antinacionais e antipatrióticas conspiram para culpar a Polônia, e não a Alemanha, pelo campo de concentração de Auschwitz, localizado em território polonês. Alguns dos escritores e pensadores que propagam esse discurso estavam no Réveillon de 2000 – e ficaram ao lado de Duda nas últimas eleições.</p><p>No exercício do cargo, Duda violou a Constituição para mudar a maneira de nomear juízes para a Suprema Corte, assumiu o controle da principal emissora estatal, demitindo os jornalistas que criticavam o regime e substituindo-os por militantes de sites de extrema direita. A antes respeitada tevê estatal polonesa, que ambicionava ser uma BBC do Leste Europeu, passou a exibir documentários de valor jornalístico duvidoso. Um deles, seguindo a linha de uma certa obsessão sexual da extrema direita, denunciava um “plano LGBT” para enfraquecer a Polônia.</p><p>Na tentativa de entender por que tantas pessoas inteligentes e bem preparadas – em geral viajadas, com pendor cosmopolita e pós-graduações no currículo – se afastam do espírito democrático, a escritora recorreu à obra da psicóloga australiana Karen Stenner, autora de artigos acadêmicos sobre a “predisposição autoritária”. Para Stenner, tal predisposição – que favoreceria a hegemonia e a ordem, em oposição a uma “predisposição libertária”, afeita à diversidade e à diferença – pode passar a vida inteira sem se manifestar. “Dito de modo simples”, interpreta Applebaum, “o autoritarismo atrai pessoas que não conseguem tolerar a complexidade: não há nada intrinsecamente de esquerda ou de direita nesse instinto. Trata-se de um estado mental, não de um conjunto de ideias.” Para que esse estado se manifeste, é necessário um estímulo. “Na Roma antiga, César tinha escultores para criar múltiplas versões de sua imagem. Nenhum autoritarismo pode ter sucesso sem o seu equivalente moderno: os escritores, intelectuais, panfletários, blogueiros, assessores de imprensa, produtores de tevê e criadores de memes que vendem sua imagem para o público.”</p><p>Anita Gargas, uma das convidadas do Réveillon que trabalha na Gazeta Polska, faz parte dos que difundem a imagem do autoritarismo polonês. Em 2014, ela produziu um documentário sobre a “tragédia de Smolensk” e alimentou as teorias conspiratórias promovidas nas redes sociais do Lei e Justiça. A tragédia refere-se ao acidente de avião que matou o então presidente Lech Kaczyński e sua comitiva na cidade russa de Smolensk, em abril de 2010. As investigações mostraram que a queda decorreu de falha humana – e todo mundo aceitou a conclusão. Até que, cinco anos depois, o Lei e Justiça, partido do presidente morto, voltou ao poder com a primeira eleição de Andrzej Duda, que reabriu o caso para investigar a hipótese de sabotagem russa. A versão conspiratória jamais foi comprovada, mas, com o reforço do documentário de Gargas, anima o discurso conspiratório da extrema direita.</p><p>Em que pese a semelhança de métodos, o autoritarismo do passado e o do presente são diferentes, segundo os estudiosos. O nazismo alemão e o fascismo italiano eram autoritarismos explícitos, numa época em que a democracia não era uma ideia majoritária. Já as ditaduras ou protoditaduras de hoje são em geral disfarçadas de democracias. Os autoritarismos modernos costumam fazer eleições periódicas, manter parlamentos abertos e constituições vigentes – mas, mesmo assim, o estado de direito vai sendo lentamente solapado. Para detectar sua progressão, às vezes, é preciso um sismógrafo capaz de captar as oscilações sutis.</p><p>Criado em 2014, o Instituto V-Dem, ligado à Universidade de Gotemburgo, na Suécia, vem fazendo uma radiografia minuciosa dos regimes políticos no planeta. Com uma enorme variedade, sua base de dados está revolucionando o estudo das democracias. Seu último relatório, publicado em março passado, traz o seguinte título: A Autocratização se Torna Viral. O termo “autocratização” é empregado quando uma democracia perde qualidade durante um período de tempo, iniciando um processo que, no fim da linha, pode resultar na instalação de um regime fechado e autoritário.</p><p>No documento, há um capítulo que classifica os regimes em quatro categorias. As “democracias liberais” estão no topo. São os regimes de maior liberdade, como Bélgica, França, Canadá, Suécia. As “democracias eleitorais” estão um degrau abaixo, com regimes ainda livres, mas com instituições menos sólidas e debate público tendendo à polarização. Exemplos: Paraguai, Peru, Colômbia, a própria Polônia. Depois, vêm as “autocracias eleitorais”, que estão perigosamente próximas da ditadura, como Filipinas, Turquia, Nicarágua, Venezuela. Por fim, as “autocracias fechadas”, que definem ditaduras sem eleição como Coreia do Norte, Cuba, China e Arábia Saudita.</p><p>O Brasil aparece entre as “democracias eleitorais”, mas o documento aponta uma tendência preocupante. Os pesquisadores levantaram os países em que o regime democrático se deteriorou com maior velocidade no período de 2010 a 2020 em todo o planeta. Nesse critério, os países que compõem o “Top 5” são, pela ordem: Polônia, Hungria, Turquia, Brasil e Sérvia.</p><p>As democracias não acabam mais abruptamente com golpes militares, descartadas exceções como Myanmar. Elas se deterioram aos poucos, seguindo um roteiro mais ou menos comum. No relatório deste ano, o V-Dem detalha o padrão. Começa com o assédio à imprensa, às universidades e às organizações da sociedade civil que garantem o debate público. O segundo momento, de acordo com o relatório, se dá quando “os governos se engajam em polarizar a sociedade, por meio de campanhas de desinformação pelas mídias sociais, com crescente desrespeito pelos argumentos dos adversários”. É quando o adversário vira inimigo. Só então, segue o texto, “minam-se as instituições e a qualidade das eleições, num passo adiante em direção à autocracia”. É fácil compreender por que o Brasil está em quarto lugar no mundo.</p><p>Para entender os critérios do V-Dem é preciso ir além das duas dimensões clássicas da democracia. A primeira é a eleitoral, já que pleitos livres e justos são o evento central das democracias e sua condição primária. A segunda são as liberdades individuais fundamentais, como as de expressão e associação, que garantem que a maioria não tiranize a minoria. Mas o norte-americano Robert Dahl (1915-2014), talvez o cientista político mais influente do século XX, ressalta em sua obra outras dimensões tão importantes quanto a eleição e as liberdades individuais. Para haver democracia, é necessário que a população participe não apenas na hora de votar, mas no período entre as eleições – em conselhos participativos, em passeatas, em interação com políticos por meio de canais digitais. Outro aspecto essencial abordado por Dahl é o debate público. Um debate de alto nível, baseado em fatos e do qual todos os cidadãos possam, em tese, participar, é central para a qualidade das democracias. Um debate baseado em fake news deteriora a qualidade democrática.</p><p>Numa democracia ideal, todos os adultos votam, as leis funcionam, o debate público é de alto nível, todos os cidadãos são suficientemente informados para decidir com racionalidade – e, quando necessário, largam os afazeres do dia a dia para participar da vida política. Dahl sabia que um regime assim não existe na vida real. Por isso, considerava que a democracia é, antes de tudo, um ideal a ser perseguido. Preferia chamar os regimes de liberdade da vida real de poliarquias, tanto melhores quanto mais se aproximassem da democracia ideal.</p><p>Em artigo sobre a obra de Dahl, os cientistas políticos argentinos Andrés Malamud e Santiago Leiras mostram que a democracia é o processo histórico de ampliação de direitos políticos e civis – o aumento da participação política e a elevação da qualidade do debate público. Tal evolução aproximaria a poliarquia do ideal democrático. Segundo Malamud e Leiras, no início da segunda metade do século XX os temas centrais da ciência política eram o desenvolvimento (transformação de sociedades arcaicas em modernas) e a revolução (a mudança do capitalismo para o socialismo). Hoje o tema central é a democratização, a transformação de regimes autoritários em regimes de liberdade. E também a preservação de tais regimes: por isso é essencial monitorar, com lupa, a qualidade democrática.</p><p>“Decidimos abordar aspectos que diferentes tradições da ciência política consideram importantes para a democracia”, disse o cientista político sueco Staffan Ingemar Lindberg, um dos criadores do V-Dem, em conversa com a piauí, também por Zoom, desde Estocolmo. Uma das influências decisivas na metodologia do instituto é justamente a obra de Dahl. Os rankings do V-Dem se assentam sobre quatro dimensões: a eleitoral, a liberal, a participativa e a deliberativa – esta última, seguindo o conceito de Dahl, mede a qualidade do debate púbico. Recentemente, foi incorporada uma quinta dimensão, a igualitária: a concepção moderna de democracia considera que uma distribuição de riqueza minimamente decente é essencial para a sobrevivência dos regimes de liberdade.</p><p>O V-Dem surgiu como uma iniciativa de quatro cientistas políticos: além de Lindberg, Jan Teorell, também sueco, e os norte-americanos Michael Coppedge e John Gerring. “Conversávamos muito sobre nossas insatisfações com os rankings existentes e queríamos criar um mais abrangente”, diz Lindberg. Ele se refere, por exemplo, ao ranking da Freedom House, criado depois da Segunda Guerra Mundial e ainda muito usado nos Estados Unidos, e o da revista britânica The Economist. O V-Dem se destaca pela quantidade de critérios (mais de quatrocentos), pela abrangência (incorpora dados desde pelo menos 1900 de todos os países do mundo) e pelo rigor metodológico (seus questionários são preenchidos por mais de 3 mil especialistas espalhados pelo planeta). O V-Dem, assim, já nasceu globalizado, numa época em que o conhecimento se dá em redes, e instalou-se na Suécia. “Simplesmente pelo fato de que a maior parte de nosso financiamento vem de fundações e governos de países escandinavos”, disse Lindberg.</p><p>A vice-campeã em deterioração democrática, a Hungria, já passou pelas duas primeiras fases descritas pelo V-Dem – assédio à sociedade civil e polarização – e chegou à terceira fase, a da mudança das regras eleitorais. “A Hungria é um dos casos mais característicos entre as autocracias modernas, onde a democracia se desfaz aos poucos”, disse o cientista político português António Costa Pinto, durante uma conversa com a piauí na cantina do Instituto de Ciências Sociais, na Universidade de Lisboa. “Isso acontece porque um país que se assume como ditadura paga um preço alto, ainda mais se ele faz parte de um clube de democracias. É o caso da Hungria com a União Europeia.” Costa Pinto estuda, há décadas, a lógica que rege os regimes autoritários, e já deu aulas sobre o assunto nas universidades Princeton e Berkeley, nos Estados Unidos. Hoje é professor na Universidade de Lisboa, onde vive, e acaba de lançar o livro O Regresso das Ditaduras?.</p><p>A deterioração da democracia húngara teve a marca de Viktor Orbán, o autocrata local, uma espécie de primus inter pares, festejado como um ídolo por Steve Bannon, o estrategista radical de Donald Trump. “Viktor Orbán é um homem sofisticado, que não chegou à política querendo destruir o sistema. Seu partido, o Fidesz, começou como uma sigla moderada”, disse Anne Applebaum. “Ele é um diplomata, amigo dos democrata-cristãos alemães e dos conservadores britânicos, fala um inglês perfeito, defende seus pontos de vista no Parlamento Europeu em Bruxelas. Com essas virtudes, foi corroendo a democracia de seu país aos poucos.” Realizou a proeza de fazer isso sem ser expulso do clube de democracias que é a União Europeia.</p><p>Antes de mexer nos ordenamentos eleitoral e jurídico, Orbán atacou a área de comunicações. No rearranjo que fez, as três rádios e as três televisões estatais, além da agência de notícias do governo, passaram a responder a um comando único – e foram entregues a pessoas de sua confiança. Orbán também incentivou empresários amigos a assumir o controle acionário em empresas de mídia privadas. O resultado: 80% dos húngaros têm como principal fonte de informação meios controlados pelo governo. Na primeira vez que se elegeu primeiro-ministro, em 1998, Orbán disse que o segredo para manter o poder era ter “oito a dez capitalistas claramente do nosso lado” e uma rede própria de comunicações. Na primeira vez, ele não conseguiu avançar sobre a mídia. Em 2010, eleito primeiro-ministro pela segunda vez, conseguiu.</p><p>Logo no ano seguinte, Orbán aprovou uma nova Constituição, aproveitando a maioria parlamentar que conseguira. Entre a apresentação do projeto e a promulgação da nova Carta decorreram apenas onze dias. Não houve debate, discussão ou plebiscito. Em vez disso, o primeiro-ministro enviou um questionário para 8 milhões de húngaros com perguntas apenas remotamente relacionadas à nova Constituição, segundo relata Paul Lendvai, jornalista húngaro naturalizado austríaco, em seu livro-reportagem Orbán: Europe’s New Strongman (Orbán: O novo homem-forte da Europa). A ideia era poder dizer que fora feita uma “consulta nacional”.</p><p>A nova Carta mudou substancialmente a política húngara, concentrando poderes no primeiro-ministro. Na formação do equivalente local ao Supremo Tribunal Federal, por exemplo, foi abandonada a prática de criar um comitê com representantes de todos os partidos – a escolha passou a ser por maioria parlamentar, ou, na prática, do primeiro-ministro. O número de juízes passou de 11 para 15. Orbán rapidamente nomeou amigos para as vagas que se abriram, incluindo ex-colegas de escola, alguns deles sem formação jurídica. Na lei eleitoral, segundo Lendvai, os distritos foram reorganizados de forma a aumentar o peso dos apoiadores de Orbán. “Esse tipo de deterioração democrática é muito sutil, pois tudo acontece aparentemente dentro da lei”, diz António Costa Pinto.</p><p>O Parlamento perdeu poderes sobre uma de suas competências centrais nas democracias – a aprovação e o controle do orçamento público. Na mudança promovida por Orbán, a aprovação do orçamento ficou a cargo de um comitê de três especialistas – todos eles nomeados pelo primeiro-ministro. Em um ensaio sobre Orbán, o cientista político belga Jan-Werner Müller, estudioso dos autoritarismos, escreveu que o primeiro-ministro húngaro alterou o ordenamento de seu país de forma que, mesmo que perca eleições, seu partido – o Fidesz, atualmente na extrema direita – continuará detendo uma fatia grande de poder.</p><p>Em um de seus livros clássicos, A Terceira Onda, o cientista político norte-americano Samuel Huntington (1927-2008) definiu três momentos em que a democracia se espalhou pelo mundo. O primeiro foi do século XIX ao início do século XX, no período pós-iluminista. O segundo foi logo após a Segunda Guerra Mundial, com o aniquilamento dos totalitarismos europeus. O terceiro, iniciado nos anos 1970 com o arrefecimento da Guerra Fria, varreu do mapa os fascismos que restavam – incluindo o salazarismo em Portugal, o franquismo na Espanha e os regimes militares na América Latina – e, posteriormente, as ditaduras nos países comunistas. Segundo a ciência política moderna, a cada vaga democratizante se segue uma onda de refluxo. Uma das grandes discussões da atualidade é se vivemos, ou não, uma “terceira onda de autocratização” – da qual a Hungria e a Polônia são exemplos lapidares na Europa, e o Brasil desponta como um caso preocupante na América do Sul.</p><p>Para responder a essa pergunta, Staffan Lindberg, presidente do V-Dem, escreveu um artigo em parceria com a alemã Anna Lührmann, até recentemente vice-diretora do instituto – ela abandonou o cargo no início deste ano para se dedicar à política partidária em seu país. A análise dos dados disponíveis desde 1900 permitiu comparar as características das diferentes “ondas de autocratização”, e captar o que o momento atual tem de peculiar.</p><p>As conclusões do estudo iluminam os dias de hoje. Nunca o mundo teve tantas democracias. São 50% dos países, de acordo com os critérios do V-Dem, contra 20% em 1960, 15% em 1930 e 5% em 1900. A velocidade dos processos de autocratização é hoje bem mais lenta que no passado, o que permite que em alguns países a sociedade civil se mobilize para reverter o processo – como ocorreu, recentemente, na Coreia do Sul. Para um país, perder o status de democracia pode significar sanções e perdas econômicas, como lembra Costa Pinto. Por isso, cada vez mais os autocratas contemporâneos – Viktor Orbán à frente – usam de estratégias graduais e, até certo ponto, legalistas para ganhar poder.</p><p>O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, é considerado outro mestre das estratégias de autocratização, tanto que se tornou responsável pela proeza mais notável – e lamentada – do relatório mais recente do V-Dem: o rebaixamento da maior democracia do planeta ao status de “autocracia eleitoral”. A Índia não faz parte dos Top 5 que mais deterioram suas democracias porque, partindo de um patamar já mais baixo, acabou rebaixada e mudou de categoria.</p><p>“Não há nenhum ataque frontal à democracia. Em vez disso, há ataques múltiplos em várias frentes. Com isso, a passos lentos, o país caminha para o autoritarismo”, disse o advogado indiano Tarunabh Khaitan, vice-reitor da Faculdade de Direito de Oxford, em entrevista à revista The Economist. Ou seja: de uma “autocracia eleitoral” caminha para tornar-se uma autocracia fechada. Khaitan é autor de um artigo acadêmico sobre seu país que leva o título Killing a Constitution with a Thousand Cuts (Matando uma Constituição com mil cortes).</p><p>As mudanças em leis promovidas ou patrocinadas por Modi atacam principalmente a liberdade e o pluralismo do debate público – dimensão central da democracia na visão de Robert Dahl. Uma “lei de sedição” aplica multas pesadas contra os que, supostamente, incitam à rebelião contra o Estado. Modi aprovou também, em 2016, uma “lei de difamação”, que pune quem usar “palavras, escritas ou faladas, ou sinais visuais, que provoquem sentimento negativo contra o governo”. Tais figuras jurídicas são aplicadas sobretudo contra jornalistas. As penas previstas na lei de difamação vão de dois anos de detenção à prisão perpétua. A nota do V-Dem para a liberdade de expressão na Índia sempre foi alta, em geral acima de 3,5 pontos de 4 possíveis. Com Modi, caiu para 1,5.</p><p>Os jornalistas não são as únicas vítimas na sociedade civil. Uma lei antiterrorismo de 1967 foi alterada em 2019 de forma a prever punição não apenas contra grupos, mas também contra indivíduos. Ela é usada principalmente contra acadêmicos dissidentes. Modi aprovou ainda leis que dificultam o repasse de verbas a organizações não governamentais internacionais, complicando sua atuação – um ataque de manual à sociedade civil. A divisão indiana da Anistia Internacional foi uma das mais afetadas.</p><p>Novas leis dificultam também a operação de empresas de mídia estrangeiras – responsáveis por um respiro pluralista em sociedades em autocratização, caso da Polônia. As novas regras levaram ao fechamento da operação indiana do HuffPost, site crítico ao regime de Delhi. O ambiente de informação na Índia, outrora vibrante, cada vez mais se parece com o da Hungria. O governo apoia os conglomerados nacionais – a maioria pró-Modi –, injeta dinheiro numa mídia alternativa que propaga discursos de ódio, e investe pesado em mídias sociais.</p><p>O sistema político indiano foi redesenhado para aumentar o poder do partido no governo. Antes das eleições de 2019, Modi patrocinou uma alteração legal que permite doações anônimas a siglas eleitorais, sem prestação de contas. Seu partido, o BJP, foi o maior beneficiário. Nas eleições, o equivalente local do Tribunal Regional Eleitoral permitiu várias formas de propaganda ilegal dos governistas, mas puniu com severidade os oposicionistas. Um dos juízes que advogou a punição do partido de Modi foi investigado por fraude no imposto de renda, e acabou deixando a corte.</p><p>O modus operandi de Modi – ou “Modi operandi”, como diz a Economist, em reportagem recente sobre o assunto – inclui nomear amigos ou correligionários fiéis para postos-chave, em detrimento de quadros técnicos. Para o equivalente indiano da Controladoria-Geral da União, Modi nomeou um funcionário aposentado de Gujarati, estado que governou. Ele passou por cima de dois generais há mais tempo no Exército para nomear um comandante-geral fiel a ele, o general Bipin Rawat – e, depois, mudou a idade máxima de aposentadoria para mantê-lo no cargo. Trocas constantes no comando do Banco Central da Índia, antes uma instituição respeitada, criam insegurança econômica. A atitude mais polêmica de Modi, um nacionalista hindu, é a lei que permite a estrangeiros hinduístas, budistas, jainistas ou cristãos obter cidadania indiana – mas veta a mesma prerrogativa a muçulmanos. Especialistas dizem que a lei viola o princípio constitucional da liberdade religiosa, mas a Suprema Corte não a questionou até agora.</p><p>O brasileiro Fernando Bizzarro, pesquisador do Instituto de Pesquisas Afro-Latino-Americanas da Universidade Harvard, escreveu uma análise sobre a evolução política do Brasil. Redigido em parceria com Michael Coppedge, um dos fundadores do V-Dem, o artigo diz que a democracia brasileira evolui “em espiral”. A curva tem uma primeira alta na República Velha (1889-1930). Cai no período getulista (1930-1945). Volta a crescer, atingindo patamares mais altos que antes, entre 1946 e 1964. Cai novamente depois do golpe militar de 1964, para depois subir e atingir seus níveis mais altos com a redemocratização a partir de 1985.</p><p>Calcado em dados do V-Dem, o artigo de Bizzarro e Coppedge abrange um período que vai até 2015, antes do impeachment de Dilma Rousseff. “Estávamos entre os melhores alunos da classe da terceira onda da redemocratização”, diz Bizzarro. “A deterioração se deu depois disso.” O tropeço começou no governo de Michel Temer. A erosão se verificou no que Bizzarro chama de “componente liberal da democracia”, que mede a capacidade do Legislativo e do Judiciário de fiscalizar o Executivo – os freios e contrapesos do regime. “Entre outras coisas, os especialistas acharam que o combate à corrupção no governo Temer não foi tão veemente quanto no governo Dilma. Ou seja, o Congresso e o Judiciário se tornaram menos capazes de controlar o Executivo”, diz Bizzarro. Até o governo Dilma, a Polícia Federal estava focada no combate à corrupção e tinha ampla liberdade para investigar, a Operação Lava Jato estava em plena atividade e não sofria constrangimentos, e a Procuradoria-Geral da República era uma força propulsora das investigações.</p><p>No segundo momento, já sob Bolsonaro, o governo passou a aparelhar a Polícia Federal, conseguiu desmontar a Lava Jato e, na definição do constitucionalista Conrado Hübner Mendes, transformou a PGR em “Poste-Geral da República”. De 2015 para cá, os estudos da V-Dem confirmam a deterioração democrática do Brasil ao analisar apenas dois dados: a liberdade acadêmica e a liberdade de imprensa.</p><p>Antes, o ambiente nas universidades ganhava nota 3,7, num critério em que a nota máxima é 4. Agora, caiu para 2,08, o que significa, nos critérios do V-Dem, que as instituições acadêmicas são “mais ou menos respeitadas pelas autoridades públicas e podem ser reprimidas por criticar o governo”. A liberdade de imprensa caiu até mais, de 3,7 para 2. Diz Bizzarro: “Embora não haja censura formal no Brasil, os especialistas acharam que o assédio a jornalistas e acadêmicos de esquerda, por parte de aliados do governo, representava algo digno de se monitorar.”</p><p>O esfarelamento democrático, no entanto, não é uma força inarredável: depende do autocrata no poder e, sobretudo, de sua reeleição. Em O Povo Contra a Democracia, o cientista político alemão Yascha Mounk, da Universidade Johns Hopkins, observa que, em seus primeiros mandatos, o turco Recep Erdoğan, o russo Vladimir Putin e o venezuelano Hugo Chávez criaram leis em benefício próprio, mas não alteraram as regras eleitorais a ponto de impedir eleições competitivas. Uma vez reeleitos – e, portanto, fortalecidos – exercitaram os músculos autoritários.</p><p>Em seu livro, lançado em 2018, ainda antes da eleição de Bolsonaro, Mounk escreve sobre o riscos de que “populistas autoritários” – como Andrzej Duda, Narendra Modi e Donald Trump – venham a se reeleger: “Caso consigam outro mandato, tudo é possível; com tempo e poder suficientes, é muito provável que todos esses líderes causem estragos violentos e duradouros à democracia.”</p><p>Acertou na mosca. Reeleito em 2019, com o controle das duas casas do Parlamento, Modi conseguiu aprovar um punhado de leis de cunho autoritário. Duda, reeleito há um ano com uma vantagem estreitíssima, imprimiu um ritmo mais lento na autocratização polonesa, mas o processo só avança. Trump, para a boa saúde da democracia norte-americana, não foi reeleito. Joe Biden conseguiu o que os adversários dos autocratas da Polônia e da Índia não conseguiram.</p><p>“Biden conseguiu mudar de assunto na campanha. Repare que ele pouco fala de Trump ou de guerras culturais. Ele mantém a conversa na economia, em como recuperar o país, em dar vacina para todos”, disse Anne Applebaum. Na Índia, era a exaltação do nacionalismo hindu. Na Polônia, como se viu, o assunto era casamento gay. Não deixa de ser um alerta para o Brasil que, na eleição de 2018, começou a inclinar-se a favor de Bolsonaro na medida em que se difundia uma lorota criada sete anos antes: o “kit gay”.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhXlmEYkMpUOT8UpyPX6NiQtlzY2x2MCPp6RS35hyphenhyphenG9lMROvxfmnEqKa0dm47dugi20tG8fljbofJmLV2tjRbvgC9kKaN3jfX3tfhenYlLhrlIwt386FMIGw95jsMihLTE5LHa6/s1615/178_pedagogiadoautoritarismo.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1615" data-original-width="1200" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhXlmEYkMpUOT8UpyPX6NiQtlzY2x2MCPp6RS35hyphenhyphenG9lMROvxfmnEqKa0dm47dugi20tG8fljbofJmLV2tjRbvgC9kKaN3jfX3tfhenYlLhrlIwt386FMIGw95jsMihLTE5LHa6/w476-h640/178_pedagogiadoautoritarismo.jpg" width="476" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-11976343532530769762021-07-24T20:04:00.005-03:002021-07-24T20:04:30.212-03:00 Dribles na tirania<p>A ideia de que Jair Bolsonaro pode desistir de tentar a reeleição não saiu da cabeça de nenhum oposicionista signatário dos inúmeros pedidos de impeachment ora postos em sossego sob o derrière do presidente da Câmara, Arthur Lira. Quem levantou a lebre foi o presidente. Não pode reclamar, portanto, se o assunto vier a tomar conta das mentes e das bocas Brasil afora. “Mas não é que pode ser uma boa?”, arrisca-se Bolsonaro a começar a ouvir daqui em diante. É claro que essa não foi a intenção dele. Tampouco se tratou de um descuido. A hipótese foi aventada ao jogar a toalha e admitir a impossibilidade de o Congresso aprovar a reintrodução do voto impresso no sistema eleitoral. Mas podemos ir além. Quais seriam as razões do presidente? Vejo duas. Estimular sua militância a embarcar numa espécie de “queremismo” revisitado inspirado em Getúlio Vargas para tentar conter o derretimento da densidade eleitoral é uma. A outra, se não der certo a primeira e as condições de competitividade descerem a ladeira a ponto de tornar a derrota inevitável, antecipar-se ao desastre saindo do jogo como se o fizesse por vontade e não por imposição das circunstâncias adversas, escreve Dora Kramer na edição da Veja desta semana. Continua a seguir.</p><p><br /></p><p>A conjuntura lá na frente pode não ser a de hoje. Mas, na conta das probabilidades, tende a ser pior. Ainda mais se a comparação for com o cenário de 2018 e mesmo com a situação antes de a pandemia conferir a Jair Bolsonaro a medalha de ouro num hipotético pódio de maus governantes.</p><p>Hoje ele já não pode cometer barbaridades tais como nomear o filho embaixador nos Estados Unidos, insultar a mulher do presidente francês, fazer troça da China, recusar-se a comprar essa ou aquela vacina, dar aval a pregações pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal, bradar coisas do tipo “agora chega” ou “acabou, p…” e por aí vai. Surpreendente é que um dia tenha podido, mas não pode mais.</p><p>Steven Levitsky e Daniel Ziblatt ensinam em Como as Democracias Morrem que os dois pilares de sustentação das “grades de proteção” dos estados de plenos direitos são a tolerância e a reserva institucional (noção de limites no exercício do poder).</p><p>“A ofensiva autoritária levou o país a acordar para questões adormecidas que havia muito precisavam ser enfrentadas”</p><p>A tolerância é diária e constantemente agredida pelo sectarismo extremo dos adeptos da crença de que adversários devem ser aniquilados. A reserva institucional é afrontada pela ausência de comedimento de Bolsonaro na cadeira presidencial.</p><p>Quando o país simpatiza com a figura de um governante, tende a tolerar a testagem de limites. Lula, por exemplo. Quis acabar com a autonomia das agências reguladoras, tentou controlar a imprensa, reclamou das amarras dos órgãos de fiscalização (do meio ambiente, inclusive), desdenhou da oposição, calou enquanto petistas qualificavam o STF como “tribunal de exceção” e introduziu na vida nacional a dinâmica do “nós contra eles”.</p><p>Plantou a semente. Bolsonaro, contudo, cultivou o campo na base do maquinário tão pesado quanto obsoleto e se deu mal. Por falta de organicidade partidária, de identificação popular, excessivo e descontrolado ressentimento, uso primário dos instrumentos de distração, vocação à crueldade, personalidade desagregadora e déficit no quesito olfato político. Lula é o contrário disso tudo e, por amado, foi tratado com indulgência.</p><p>Também diferentemente do petista, Jair Bolsonaro, eleito por exclusão, já tomou posse altamente rejeitado. Além de não ter trabalhado para mudar essa condição, só fez aprofundar e ampliar a desaprovação. A presença dele na Presidência tem sido um transtorno, é fato. Mas é verdade também que às ações malfazejas têm correspondido reações benfazejas. Questões que estavam adormecidas começaram a ser enfrentadas.</p><p>A exorbitante presença de militares no governo resultou no apoio praticamente unânime à emenda que restringe a presença das fardas em cargos de natureza civil. O uso abusivo da Lei de Segurança Nacional pôs para andar a reformulação desse entulho autoritário.</p><p>A insistência de Bolsonaro no voto impresso — até outro dia defendido por gente equivocada, mas de boa-fé — consolidou a aprovação ao sistema eletrônico. E até o poder monocrático do presidente da Câmara, sem data-limite para o exame de pedidos de impeachment, já é objeto de um projeto de resolução em tramitação na Casa.</p><p>É assim que sociedades de firmes convicções democráticas aplicam dribles em governantes de fortes tendências autoritárias.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhgi0Nma9bbcW25K2syc0vum-RH-rAQ3tCY-skPPB9TFCCZOc1mFlxPnZwU34zWKPVqB6avS7gPr8RPom58W3_bpfkEElNbh7E_TdpubObnP9AAOhUAyarrm1ZJH-xPy7-8BdCX/s680/51309739956_b8216d149e_k-2+%25281%2529.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="453" data-original-width="680" height="426" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhgi0Nma9bbcW25K2syc0vum-RH-rAQ3tCY-skPPB9TFCCZOc1mFlxPnZwU34zWKPVqB6avS7gPr8RPom58W3_bpfkEElNbh7E_TdpubObnP9AAOhUAyarrm1ZJH-xPy7-8BdCX/w640-h426/51309739956_b8216d149e_k-2+%25281%2529.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-22424322392402050022021-07-24T19:58:00.001-03:002021-07-24T19:58:03.174-03:00 Megainvestidor George Soros expõe seus temores<p>Para quem conhece o pensamento do megainvestidor e filantropo húngaro George Soros por meio do clássico “A alquimia da finança” (1988), talvez o maior interesse da leitura de “Em defesa da sociedade aberta” esteja em encontrar um perfil mais amplo e menos sólido de seu autor. Neste apanhado de textos em que expõe sua maneira de pensar, sobretudo o que denomina sua “estrutura conceitual”, Soros não esconde a apreensão de quem vê o mundo se encaminhando na direção oposta de seus ideais, com a ascensão de lideranças políticas com viés antidemocrático, a mudança climática, a falta de cooperação internacional, o excesso de poder das plataformas digitais. Nos capítulos de teor mais teórico, adota um tom ligeiramente lamentoso por ser mais conhecido como “o homem que quebrou o Banco da Inglaterra” do que como pensador. Tudo somado, os escritos de alguém cuja atuação alcança escala global revelam algo de essencialmente humano, escreve Diego Viana em resenha publicada no Valor na sexta, 23/7. Continua a seguir.</p><p><br /></p><p>Ao ler os comentários do megainvestidor, convém ter em mente que, na última década, seu nome foi repetidamente martelado por extremistas políticos, alguns bastante poderosos. Ultranacionalistas, neonazistas e teóricos da conspiração fizeram de Soros um emblema do que denominam “globalismo” e denunciavam como um ataque a valores nacionais e tradicionais.</p><p>Viktor Orbán, presidente da Hungria e candidato a autocrata, tomou todas as atitudes que pôde para limitar a influência de Soros em seu país natal. O alvo favorito de Orbán foi a Universidade Centro-Europeia (CEU), fundada por Soros. Seu principal campus estava localizado em Budapeste até 2018, mas o governo húngaro introduziu mudanças na lei da educação superior que, na prática, expulsaram a universidade do país. A maior parte dos cursos foi realocada para Viena, capital da Áustria.</p><p>Atacado com veemência, Soros se tornou um símbolo. A bem dizer, a figura do megainvestidor húngaro já carregava um forte simbolismo antes mesmo de sua apropriação pela extrema direita conspiracionista. Ao longo da década de 1990, Soros era evocado sempre que uma crise financeira assomava no horizonte, depois de lucrar US$ 1 bilhão em 1992 graças a uma crise cambial no Reino Unido. A crise de 2008 reforçou a imagem de mago das finanças do investidor húngaro. Este é, em todo caso, um livro que contém as ideias de um símbolo, traduzidas para o público amplo.</p><p>É no confronto entre o lado simbólico do magnata nonagenário e suas confessadas frustrações (o termo é do próprio autor) que transparece a humanidade do personagem. As passagens que relatam detalhadamente a criação das fundações Sociedade Aberta e da CEU têm um indisfarçado tom autocelebratório que, à luz dos retrocessos da última década, acaba mitigado. Com sua filosofia luminosa e discretamente ingênua, a voz de Soros parece ser a portadora de um otimismo histórico que logo reconhecemos como pertencente aos últimos 20 anos do século XX, quando a economia de mercado rapidamente se expandia para áreas que até então lhe resistiam energicamente e dezenas de países se converteram à democracia liberal.</p><p>Como diz o próprio Soros, o projeto inicial de sua atividade filantrópica era manter a “sociedade aberta” a salvo de inimigos que a ameaçavam, ou queriam ameaçar. No mundo de Donald Trump, Orbán e seus êmulos, o objetivo passou a ser o resgate da própria ideia de uma sociedade aberta.</p><p>Como o próprio autor relata, este conceito é herdado diretamente do epistemólogo austríaco Karl Popper, que publicou seu livro “A sociedade aberta e seus inimigos” em 1945, quando o triunfo sobre o nazismo e a ameaça stalinista justificavam distinções bem talhadas e evidentes. Assim, uma “sociedade aberta” é aquela que comporta a diversidade dos pontos de vista e os confrontos de ideias. Seus inimigos são aqueles que pretendem organizar a vida em comum a partir de uma única ideia. Por melhor que ela seja, só pode ser amplamente adotada sob coerção, o que conduz a sociedades repressivas.</p><p>Ao descrever sua concepção da sociedade aberta, Soros aponta uma pequena particularidade em relação à de Popper, que foi seu supervisor no início da década de 1950, na London School of Economics. Onde este último se refere à imposição coercitiva de uma verdade última, ampliando e atualizando a ideia original de Henri Bergson, o filantropo acrescenta a figura de um indivíduo que realiza essa coerção, um líder político que encarna o fechamento da sociedade. Soros não entra em detalhes sobre o motivo dessa adição, que, se aplicada literalmente, excluiria da definição muitos regimes da Cortina de Ferro, que ele combateu.</p><p>No entanto, a pequena diferença ajuda a entender a recorrente menção ao nome de Vladimir Putin, presidente da Rússia. Os capítulos biográficos, que narram a história das fundações Sociedade Aberta e da CEU, pontuam em diversas passagens os momentos em que os planos do líder russo se chocaram com os projetos do filantropo, a tal ponto que parece emergir uma rivalidade entre dois indivíduos. Ou seja, não se trataria simplesmente de Putin querendo expandir seu poder, mas haveria também um elemento de retaliação contra o próprio Soros, individualmente.</p><p>O conflito ucraniano e a anexação russa da Crimeia, em 2014, são denunciados por Soros como alguns dos maiores perigos enfrentados pela União Europeia. Ele exorta o continente a tomar medidas mais duras contra a potência a Leste e confessa estranhamento pelas respostas prudentes das autoridades supranacionais, chegando a compará-las à fracassada estratégia de conciliação com Hitler do primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain em 1938.</p><p>Talvez este seja o ponto em que as limitações da filosofia de Soros apareçam com maior clareza: na rivalidade entre o filantropo e o presidente russo, só um dos lados pode dispor de bombas atômicas, tanques e caças, sem falar na chantagem com o fornecimento de gás. Este é um dado com o qual os líderes europeus têm de contar, diferentemente do megainvestidor.</p><p>Comentando os perigos da economia de plataformas, com uma crença possivelmente excessiva na oposição clara e distinta entre regimes políticos de liberdade e de opressão, Soros antevê o perigo de uma aliança entre governos antidemocráticos e as corporações digitais que controlam a atenção de bilhões de usuários mundo afora, minando sua liberdade de pensamento e sua capacitação para a cidadania. Essa conjunção de interesses geraria, alerta o filantropo, um poder de vigilância totalitário para além dos sonhos de George Orwell.</p><p>Soros chama atenção em particular para uma iniciativa com potencial catastrófico: o projeto chinês do “sistema de crédito social”, que consolida formas “peer-to-peer” de controle social com base nos sistemas de “curtidas” e avaliações das redes sociais. No entanto, apesar do escopo chamativo do projeto chinês, as tecnologias que deixam Soros ressabiado já têm feito seus estragos em outros cantos do mundo há alguns anos. A fusão da capacidade de vigilância privada com a estatal já ocorreu nos Estados Unidos e no Reino Unido, conforme revelado por Edward Snowden em 2013, muito antes de Soros apontar China e Rússia como os países onde essa fusão aconteceria em primeiro lugar, na palestra diante dos participantes do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, em fevereiro de 2018.</p><p>Em paralelo, Soros deixa de lado o fato de que tecnologias de reconhecimento facial já vêm sendo usadas por forças policiais de dezenas de países no mundo, incluindo a China, o Japão, a Coreia do Sul, os Estados Unidos e várias democracias europeias. Na pandemia, essas ferramentas adquiriram uma legitimidade inesperada, com o controle sobre pessoas que furavam a quarentena. Recentemente, o Brasil também tentou a compra de um programa israelense de espionagem digital. Os problemas ligados a essas tecnologias se acumulam, para além das já assustadoras vigilância constante e quebra de privacidade: os algoritmos tendem a reproduzir padrões racistas clássicos no mundo analógico, incluindo a dificuldade de distinguir entre dois rostos negros apenas ligeiramente semelhantes. O fato de que tudo isso esteja acontecendo em sociedades que consideramos abertas poderia constituir um sintoma dos perigos que Soros busca denunciar.</p><p>Os seis capítulos de “Em defesa da sociedade aberta” compõem uma pequena colcha de retalhos das ideias do megainvestidor. O primeiro contém a transcrição de duas palestras em Davos, em 2018 e 2019. O segundo, que trata do histórico das fundações Sociedade Aberta, foi escrito especificamente para este volume, assim como o terceiro, que conta a trajetória da CEU. Os dois capítulos seguintes trazem pouca luz nova a quem está interessado em conhecer as entranhas do pensamento de Soros. O quarto é um trecho do livro “O novo paradigma dos mercados financeiros”, publicado em 2009, em que o investidor critica a resposta do governo americano à crise financeira de 2008. O quinto tem por base ensaios, palestras e outras intervenções ao longo do amplo período que vai de 2014 a 2019, para tratar das múltiplas crises europeias. É sobretudo no último capítulo que Soros apresenta sua estrutura conceitual, explicando os conceitos de falseabilidade e reflexividade que empregou na vitoriosa carreira nos mercados financeiros.</p><p>Em defesa da sociedade aberta</p><p>George Soros Trad.: Cássio de Arantes Leite Intrínseca, 192 págs. R$ 49,90</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7yVgQqnI9bNH_pBfJZVhpvYXpOyxtzNzrymLr-37t4SA4h1vtKzftkGanc-gfhTwmO1m8v4GQezx_jBnKT9nVmEGp43CFSI2IJl02vCg6iqGSMwIlufczAtOnosLlQ3MWVAZD/s1406/foto23cul-302-livro3-d28.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1406" data-original-width="984" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7yVgQqnI9bNH_pBfJZVhpvYXpOyxtzNzrymLr-37t4SA4h1vtKzftkGanc-gfhTwmO1m8v4GQezx_jBnKT9nVmEGp43CFSI2IJl02vCg6iqGSMwIlufczAtOnosLlQ3MWVAZD/w448-h640/foto23cul-302-livro3-d28.jpg" width="448" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-11522306344832891512021-07-24T18:53:00.002-03:002021-07-24T18:53:23.695-03:00 Arthur Lira e Centrão querem mudar para permanecer ainda mais fortes no poder<p>Em muitos momentos da história, a elite política brasileira optou por ideias prontas que seriam capazes de dar conta de vários desafios do país. Quase sempre esse processo era pouco conversado com a sociedade e, geralmente, escondia agendas ocultas, enunciando apenas o “lado bom” das propostas. O presidente da Câmara, Arthur Lira, comanda hoje um debate sobre reforma política que segue esta linha de “soluções em busca de problemas”, na qual não há um diagnóstico claro sobre as causas do fenômeno e sobre a efetividade das mudanças. O que importa para o reformismo do Centrão é mudar para permanecer ainda mais forte no poder. A lista de alterações no ordenamento do sistema político proposto por Lira e seu exército de reformistas do Centrão é realmente impressionante. Para ficar nas mais importantes, mudanças no modelo eleitoral, na forma de prestação de contas dos partidos, na atuação do Tribunal Superior Eleitoral, voto impresso e, agora, a troca do presidencialismo pelo semipresidencialismo. É verdade que, neste cipoal propositalmente confuso de modificações, surgem até medidas baseadas em dados objetivos e que seguem uma lógica correta, como as vinculadas à participação feminina nas eleições. Mas não adianta olhar para cada uma das partes sem entender a concepção mais ampla deste processo, escreve Fernando Abrucio em sua coluna no Valor, publicada sexta, 23/7. Continua a seguir.</p><p><br /></p><p>O modelo reformista de Lira e companhia baseia-se em cinco características. Primeira: fazer muitas reformas e rapidamente. Segunda: realizá-las sem o debate adequado com a sociedade e especialistas. Terceira: ter as soluções sem que haja um diagnóstico prévio que de fato embase as propostas de mudança. Quarto: ter o cuidado de fazer mudanças que reforcem o poder dos reformadores do Centrão e seus aliados ocasionais, mas gerando a impressão de que estão resolvendo problemas urgentes do sistema político. E, por fim, toda essa correria por diversas reformas, e não só no campo político-institucional, é uma estratégia do presidente da Câmara para se fortalecer no jogo com a Presidência da República e com certos setores sociais. No fundo, Lira propõe várias coisas ao mesmo tempo para não expor sua agenda oculta.</p><p>Todas estas características têm conexão entre si. Ao fazer reformas mais céleres, o reformismo do Centrão reduz o tempo de debate, a transparência das decisões e, sobretudo, alija a sociedade de uma participação mais efetiva (e não decorativa) neste processo de mudança. A rapidez e a grande quantidade de alterações legais também diminuem a possibilidade de se fazer um diagnóstico mais preciso da realidade, que defina claramente a relação entre os problemas e os remédios institucionais propostos.</p><p>Mas como sempre há alguma medida correta num pacote tão grande de modificações, além de haver um charme em se propor algo para transformar o sistema representativo, muitos aceitam reformas com pouco embasamento analítico e aceitam mudar tudo de uma vez à espera de um novo tempo. Só que não. O resultado maior de todo o reformismo de Lira é garantir a força de seu grupo, inclusive frente àqueles que recentemente o chamavam de “velha política” e hoje não vivem sem um Centrão para chamar de seu.</p><p>Uma mistura explosiva contra a democracia brasileira alimenta esse reformismo atual. Sua agenda não dialoga nem com a última eleição nem com os cidadãos brasileiros que estão há um ano e meio no perrengue de uma pandemia que causou muitas mortes e empobrecimento. Afinal, quem na campanha eleitoral propôs mexer em tantas regras com os remédios que estão sendo propostos? Alguém foi eleito em 2018 em nome da entusiasmante reforma que estabelece o “distritão” como sistema de votação? Quantos eleitores ou grupos sociais foram ouvidos pela Câmara para permitir uma flexibilização da prestação de contas dos partidos? O povo foi avisado que elegerá um presidente que poderá ser mais frágil institucionalmente se for aprovado às pressas o semipresidencialismo, mesmo depois de o eleitorado ter aprovado em massa o presidencialismo no plebiscito de 1993?</p><p>Os modernizadores do Centrão poderão dizer que desde as jornadas de junho de 2013 os eleitores clamam por uma ampla reforma do sistema político. Sim, há descontentamento social amplo contra as instituições políticas. Entretanto, tal sentimento é muito difuso e baseado em perspectivas heterogêneas sobre o que deve ser feito. Por isso, é necessário um diagnóstico organizado pelos políticos eleitos, em diálogo com especialistas, para ser apresentado e debatido pela sociedade.</p><p>O que está ocorrendo é o inverso. Basta pensar na qualidade das soluções propostas. De que estudos tiraram a ideia de que o “distritão” é o sistema eleitoral mais adequado para resolver as mazelas da representação no Brasil? Qual é a pesquisa sobre o desempenho das urnas eletrônicas que embasa a proposta do voto impresso defendido por bolsonaristas e seus novos aliados da “velha política”? O deputado Arthur Lira conhece as diferenças mais gerais entre os sistemas políticos da França e de Portugal? De qual deles viria a fórmula semipresidencial para o Brasil? Como seria o semipresidencialismo numa federação como a brasileira, dado que os dois exemplares desse padrão no mundo são Estados unitários?</p><p>Para uma reforma tão ampla, há muitas perguntas básicas sem a mínima resposta. A junção de um modelo reformista quase secreto com a falta de embasamento técnico pode gerar um Frankenstein institucional. Antes de mais nada, é preciso ter um mapa de evidências sobre o funcionamento do sistema político, para, a partir disso, montar propostas e dialogar com a sociedade. Neste processo, poderá se perceber que há assuntos mais prioritários, os quais merecem maior atenção reformista. Ora, o que hoje é mais importante no cipoal de reformas propostas por Arthur Lira e seus aliados? Qual é o principal problema que está sendo atacado e por quais razões? Ninguém tem a menor ideia. Um país que não sabe qual é o seu caminho estratégico, em todos os planos da coletividade (economia, instituições políticas e políticas públicas), está fadado a trilhar o sentido errado das mudanças.</p><p>O exemplo do “distritão” representa fielmente a lógica do reformismo do Centrão. A escolha por ele seria para eleger os que têm mais votos. Mas nenhum político brasileiro é eleito por fora dos partidos e enfraquecê-los é o primeiro passo para piorar a qualidade da representação, pois será priorizado o individualismo dos candidatos, sem compromisso com pautas organizadas coletivamente e de forma constante, que é a tarefa das agremiações partidárias em qualquer democracia do mundo.</p><p>Mas isso quer dizer que os partidos funcionam adequadamente no Brasil? Bom, se o problema está neles, a reforma deve ser outra, e não a alteração para um sistema eleitoral que não dialoga com nossos problemas e não é nem referência internacional de boas práticas institucionais. Se os partidos precisam ser mais transparentes, mais permeáveis à participação da sociedade, ter mecanismos de controle sobre suas lideranças evitando a oligarquização partidária, que as reformas caminhem nesta direção. Mas quem do Centrão está interessado neste caminho?</p><p>A discussão do semipresidencialismo tem o mesmo defeito. O diagnóstico que o embasa relaciona-se à instabilidade do presidencialismo brasileiro. Isso seria solucionado com a indicação de primeiros-ministros que possam cair a qualquer momento num sistema multipartidário com partidos oligarquizados e com pouco controle social? A mudança do sistema pode tentar substituir a dificuldade de se trocar governos com problemas congressuais e/ou de popularidade por coalizões partidárias também instáveis e com pouca “accountability” junto ao eleitor. O Brasil poderia ficar mais próximo da Itália do pós-Guerra, com suas centenas de gabinetes nos quais mandavam sempre os mesmos. Provavelmente é isso que desejam Lira e seus amigos do Centrão.</p><p>Reformas institucionais são permanentes e centrais na democracia. Porém, devem ser feitas de forma pública e longamente debatidas, baseadas em diagnósticos claros e em prognósticos que calculem as possíveis consequências das mudanças, orientadas por uma visão sistêmica que olhe a relação entre todas as partes envolvidas (sistema partidário, eleitoral etc.), além de guiadas por alterações incrementais e que definam prioridades, pois não é prudente mudar tudo de uma vez só quando não se sabe os efeitos de tanta modificação. Se fosse para escolher, seria melhor começar pela PEC Pazuello, que delimita a indicação de militares para postos civis. A experiência atual já nos ensinou o suficiente sobre o risco democrático de se ter um governo militarizado e refém de um presidente autoritário.</p><p>A fórmula Lira de reformismo, no entanto, precisa desse modelo inflacionado de propostas e com pouco tempo para debate. É por este caminho que ele ganha poder junto aos pares, ao que se soma o pacto orçamentário secreto que fez com o Executivo federal. Ademais, com uma agenda de alterações legislativas inchada, não se discute e nem se define no Legislativo o maior problema do país hoje, que ficará nas gavetas do presidente da Câmara para que ele se transforme, de fato, no homem mais poderoso do país. Somente as ruas podem mudar essa realidade, gritando a palavra que foi interditada do debate pela aliança entre Bolsonaro e Lira.</p><p>Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas, escreve neste espaço quinzenalmente</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg1PsOY0JDUfrnKNAUQhJcnYtBMmiPFi4k7xf5x4-d_k7Oy8fSCAIb0V6jWQp_0fOW4NIB-F131b5FnFwS6eZd7UCm7g4a3uMr25J7mbttPbaXJjSsWYWJ5T2NFjyDErt38SZm2/s984/foto23cul-501-respublica-d6.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="528" data-original-width="984" height="344" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg1PsOY0JDUfrnKNAUQhJcnYtBMmiPFi4k7xf5x4-d_k7Oy8fSCAIb0V6jWQp_0fOW4NIB-F131b5FnFwS6eZd7UCm7g4a3uMr25J7mbttPbaXJjSsWYWJ5T2NFjyDErt38SZm2/w640-h344/foto23cul-501-respublica-d6.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-47563462170871597722021-07-24T18:12:00.003-03:002021-07-24T18:12:11.129-03:00 O absurdo observado por Ignácio de Loyola Brandão em 1961 virou o Brasil de 2021<p>“Não verás país nenhum”, de Ignácio de Loyola Brandão, publicado em 1981, é uma obra-prima da literatura do absurdo, que antecipa em 40 anos o nosso estranhíssimo Brasil enfermo de hoje. Autores da literatura do absurdo têm o dom de ver nas minúcias da realidade e nas entrelinhas anômalas da vida cotidiana indícios de uma sociedade que, aparentemente, ainda não existe. E parece que não vai existir. Mas que está lá, na invisibilidade enganadora da falsa consciência do real, do que é ainda gestação de relações sociais e de mentalidades. Uma sociedade de contraste com tudo que estamos habituados a considerar uma sociedade “normal”. Parece fantasia de escritor imaginoso. Cada vez mais, porém, essas obras são verdadeiras etnografias de transformações sociais que levarão a sociedades tão absurdas quanto suas antecipações literárias, escreve José de Souza Martins no Valor, em artigo publicado na sexta, 27/7. Continua abaixo.</p><p><br /></p><p>Em seu primeiro livro, “Depois do sol”, Loyola traz à luz de seus contos as revelações da noite da cidade de São Paulo. A noite como o inverso do dia, não apenas como o diferente, a sociedade oculta. Na antropologia brasileira, as realidades invertidas da noite de exu foram estudadas por Marco Aurélio Luz e Georges Lapassade, em “O segredo da macumba”. O que confirma a etnografia subjacente à literatura do absurdo.</p><p>O absurdo de “O outro lado do espelho”, de Lewis Carroll, é cada vez mais real. Alice, a personagem do livro, era real, existia e entendia a narrativa nele contida. As histórias de Franz Kafka são o absurdo naturalizado.</p><p>Na fábula política do avesso do avesso de “A revolução dos bichos”, de George Orwell, podemos, com facilidade, identificar sociedades que conhecemos, a começar da nossa, naquela conclusão fatídica: no baile de humanos com porcos, “já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco”.</p><p>Em “Não verás país nenhum”, Loyola descreve uma estranha São Paulo, progressivamente corroída pelo absurdo de um sistema de dominação e de um modo de vida decorrente, aos quais as personagens se ajustam com pequena estranheza.</p><p>Souza, a personagem principal, aos poucos será diluído no emprego que não o emprega. Adelaide, sua mulher, esposa adjetiva e praticamente imaginária, revelará com o tempo que ela é, na verdade, o oposto da mulher pelo marido imaginada. Os habitantes da cidade enferma são realidades irreais, desencontradas consigo mesmas, conformadas no inconformismo meramente residual.</p><p>Loyola não pretendeu fazer sociologia, embora haja no livro um fundo de temas sociológicos, do tipo tratado pela sociologia fenomenológica, a que de certo modo analisa as relações sociais a partir do imaginário que lhes dá sentido.</p><p>O absurdo descrito no romance, com o tempo, foi se confundindo cada vez mais com a realidade. A invasão da casa-refúgio da classe média, de Souza, é patrocinada por um sobrinho de Adelaide, a esposa que se fora e já não existe. Estranhos passam a nela viver como se fosse sua própria casa. Estavam à vontade no que não era seu, enquanto Souza já não estava à vontade na casa que supunha sua. É o direito de propriedade que se esfuma.</p><p>A realidade da classe média vai se desgastando para passar a ser aquilo que era, uma fantasia cruel, um vazio. Uma classe cada vez mais excluída até o ponto de se tornar parte do monturo, do lixo da cidade. Ela se torna uma classe de descartáveis, sem lugar, seres que não são, confinados no nada, desprovida dos valores e privilégios da sociedade de consumo, de suas coisas cada vez mais inúteis como os móveis de apego simbólico levados para o lixão.</p><p>Sem objeto, os sociólogos têm sua cota de desfiguração na sociedade que se esvai. A transformação do modo de ser da sociedade do absurdo reduzido a pseudoconceitos. Eles começavam a se esmerar na conceituação sociológica que nada conceitua a não ser a superficialidade de uma sociedade já desprovida de práxis e de protagonismo histórico. A sociedade que é não sendo, a da alienação absoluta.</p><p>O absurdo observado por Loyola em 1961 tornar-se-ia a sociedade brasileira de 2021. O Brasil de hoje não é uma surpresa, um acidente, um erro de cálculo. Lentamente, há 60 anos, ele já estava sendo o que é hoje. O poder se tornou um jogo de aparências, um faz de conta, não raro um circo. O povo deixou de ser agente de sua própria história para se tornar espectador passivo e indiferente.</p><p>À luz da sociedade cinzenta da atualidade, das incertezas de agora, dos abusos do poder paralelo e oculto, das invisibilidades planejadas que nos manipulam e manipulam nossa própria vida, podemos reler “Não verás país nenhum” como obra de antecipação do Brasil de agora. Ninguém podia imaginar, porém, que a metamorfose ocorreria tão depressa e de maneira tão amplamente perturbadora.</p><p>José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "No Limiar da Noite" (Ateliê, 2021).</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi_K-5VMtxlnBdC_xesUfQ_EQtL4waw9inWiIT896rQYlPVh9UIfInmAD1g92dxawl5eVM_lRmRINKoXkJ5aBgwazIH-CX5LM0fRJKtjdOsZs1V9SzxPpa8IpA6ix5x9BhXXcVx/s1000/foto23cul-201-social-d4.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="740" data-original-width="1000" height="474" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi_K-5VMtxlnBdC_xesUfQ_EQtL4waw9inWiIT896rQYlPVh9UIfInmAD1g92dxawl5eVM_lRmRINKoXkJ5aBgwazIH-CX5LM0fRJKtjdOsZs1V9SzxPpa8IpA6ix5x9BhXXcVx/w640-h474/foto23cul-201-social-d4.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-8488338506606127032021-07-24T18:02:00.004-03:002021-07-24T18:02:24.028-03:00 Reino Unido decreta o fim da pandemia. Foi a melhor decisão?<p>No dia 19 de julho o governo inglês revogou todas as medidas de distanciamento social, o uso de máscaras e as restrições ao comércio. A vida voltou ao normal em Londres. Os ingleses festejaram nos pubs e nas boates. A festa do "dia da liberdade" virou a noite. As únicas restrições mantidas se relacionam às viagens internacionais e ao ingresso de turistas. A partir de agora, o controle da covid passa a ser uma responsabilidade individual e não mais do governo. Ou seja, a covid vai ser tratada como mais uma doença infecciosa. Cada um cuida de si e administra os riscos que deseja correr. O governo informa a população, fornece os meios para as pessoas se protegerem (vacinas) e hospitais para se tratarem. A lógica por trás dessa decisão é que existem vacinas capazes de evitar novos casos e mortes. Essas vacinas já foram oferecidas a todos os maiores de 18 anos do país: quem quis foi vacinado com as duas doses. Além disso, quem desejar vai receber um reforço nos próximos meses, escreve Fernando Reinach no Estadão, em texto publicado sábado, 24/7. Continua a seguir.</p><p><br /></p><p>Os que não se vacinaram foram contatados por telefone e e-mail e a vacina lhes foi oferecida. Com isso mais de 60% da população está vacinada e os 40% restantes são crianças e os adultos que não querem se vacinar. Testes rápidos de antígenos foram distribuídos e qualquer residência pode ter um par deles na gaveta.</p><p>Tudo isso fez com que o risco da covid para a população tenha se reduzido a níveis aceitáveis. E deve continuar assim pois a doença está controlada e as novas cepas estão sendo constantemente monitoradas, como fazem com a gripe. </p><p>Nesse contexto, o governo não acredita que seja justo atrapalhar a vida de toda a população por causa de uma minoria que se recusa a ser vacinada. O plano é que a covid seja incorporada à rotina da vida de todos os ingleses, como já acontece com as outras doenças infecciosas: gripe, sarampo, Aids e tantas outras.</p><p>A aposta da Inglaterra é arriscada. No exato momento em que as medidas foram anunciadas o número de casos da variante delta está subindo (~40 mil por dia) e se acredita que pode chegar a 100 mil por dia. Apesar desse aumento de casos, o número de internações e óbitos continua baixo, como previam os epidemiologistas. Se essa tendência continuar quando os efeitos da abertura total forem sentidos nas próximas semanas, o governo inglês vai poder afirmar que a pandemia realmente terminou. O Sars-CoV-2 passou a ser mais um vírus “normal”, monitorado e combatido com vacinas. </p><p>Os otimistas acreditam que tudo vai dar certo e que essa onda atual de casos ainda vai aumentar. Acham que ela vai ajudar o país a atingir mais rapidamente a imunidade coletiva. Essa onda está sendo chamada de “onda de saída”, uma consequência da liberação das medidas restritivas. São na maioria casos leves, pois casos graves se concentram em pessoas não vacinadas.</p><p>Já os pessimistas estão com medo de que o atual crescimento dos casos acabe lotando os hospitais e provocando um aumento de mortes, o que obrigará o governo a voltar atrás. Ou seja, acreditam que a vacinação ainda não desacoplou totalmente o número de casos do número de mortes. Além disso temem que a circulação do vírus possa permitir o surgimento de novas variantes.</p><p>O fato é que a Inglaterra foi o primeiro país a decretar o fim da pandemia e a volta à normalidade. Uma decisão baseada em análises feitas por cientistas com base na enorme quantidade de dados que a Inglaterra vem coletando. Logo saberemos se essa foi a decisão correta. </p><p>Se tiver sido, a Inglaterra vai mostrar ao mundo como será nosso futuro. Ou então os ingleses terão que meter o rabo entre as pernas e voltar atrás na sua decisão de decretar o fim da pandemia.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj3yo6ZI0oP7LyAuL8nGjvY_6Qs9fOMV7Dq-6TLIU1Eabkblrko8bVQQX4EjbYlM2_5xEK_XysxLOquLyArgSfBI5KARfoUFAhm-SO5MI8ES9-f7j8Ho_4Uoo6RXZP7sFAQH2-J/s932/1627081346477.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="621" data-original-width="932" height="426" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj3yo6ZI0oP7LyAuL8nGjvY_6Qs9fOMV7Dq-6TLIU1Eabkblrko8bVQQX4EjbYlM2_5xEK_XysxLOquLyArgSfBI5KARfoUFAhm-SO5MI8ES9-f7j8Ho_4Uoo6RXZP7sFAQH2-J/w640-h426/1627081346477.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-72591695551980006922021-07-24T17:51:00.001-03:002021-07-24T17:51:10.352-03:00 Três traduções do interesse coletivo<p>Na França, só se entra em cinemas e museus com prova de vacinação ou teste negativo —e logo a regra valerá para shoppings, cafés e restaurantes. Na Austrália, nova rodada de lockdowns atinge a maioria da população, enquanto a Europa volta à quase normalidade. No Brasil, prefeitos cassam o direito à imunização dos chamados “sommeliers da vacina” —e recebem aplausos de ilustres comentaristas. Interesse coletivo versus direitos individuais, em três versões. Vacinar é direito individual ou dever cívico? O governo francês decidiu-se pela segunda alternativa. Manifestações populares conduzidas pela extrema direita ou pela extrema esquerda contestam o “arbítrio estatal”, escreve Demétrio Magnoli em sua coluna na Folha de S. Paulo, publicada neste sábado, 24/7. Continua abaixo.</p><p><br /></p><p>Há uma certa graça nas cenas de líderes extremistas, admiradores de Putin ou do castrismo, engajando-se na apologia dos direitos civis.</p><p>A diversão cessa quando eles cruzam o limite do discurso delinquente para equiparar o “passe sanitário” à marcação dos judeus com estrelas de Davi pelo regime nazista.</p><p>A resistência à vacinação estende-se por mais de um terço dos franceses e, até o advento do “passe sanitário”, a campanha de imunização seguia em ritmo inferior ao da maioria dos países europeus. O alegado direito de recusar a vacina seria pago por mais óbitos derivados da persistência da epidemia e empregos perdidos em renovadas restrições sanitárias.</p><p>Nos EUA, onde as hospitalizações concentram-se em estados com alta proporção de eleitores de Trump e baixas taxas de imunização, governadores republicanos ponderam a necessidade de imitar a lei francesa.</p><p>Ao contrário da França, na Austrália faltam vacinas. Desde o início, a ilha-continente adotou a estratégia de Covid-Zero pregada pelo fundamentalismo epidemiológico. O governo decidiu que o vírus seria eliminado por meio de lockdowns implacáveis —e, portanto, a imunização jamais figurou como prioridade.</p><p>A vida acima de tudo: sob a tradução australiana do interesse coletivo floresceram hotéis de quarentena vigiados por forças policiais e cassou-se o direito ao retorno de cidadãos residentes no exterior.</p><p>O fundamentalismo epidemiológico provou-se errado. O coronavírus resiste a qualquer lockdown e, tudo indica, mesmo à vacinação coletiva. A maioria das nações optou por conviver com o patógeno, reduzindo radicalmente os contágios e hospitalizações pela imunização em massa.</p><p>A Austrália, porém, tornou-se refém da doutrina de supressão absoluta do vírus, que vai se convertendo numa doutrina de supressão absoluta das liberdades públicas por tempo indefinido.</p><p>No Brasil, como na Austrália, ainda faltam vacinas — mas, ao contrário da França, e como atestado de mais um fracasso de Bolsonaro, a resistência à vacinação é insignificante. O interesse coletivo exige acelerar a campanha de imunização, o que se traduz no plano político pela denúncia da sabotagem governamental na aquisição de vacinas.</p><p>Mas, em busca de um lugar ao sol, diversos prefeitos trocaram de alvo, definindo cidadãos comuns que tentam selecionar vacinas como inimigos do interesse coletivo.</p><p>Os “sommeliers da vacina” não violam lei alguma quando circulam de posto em posto à procura de seu imunizante preferido —e, no fim, desistem ou tomam a vacina oferecida.</p><p>Já os prefeitos que registram seus nomes e os transferem para o “fim da fila” violam seu direito à vacinação, cujo exercício está regulado por regras impessoais de prioridade.</p><p>De fato, incorrem nos crimes de discriminação e negação de atendimento de saúde. O interesse coletivo funciona, no caso, apenas como álibi para a prática de um ato arbitrário capaz de render pontos no tribunal das redes sociais.</p><p>Na França e na Austrália, distintas traduções do interesse coletivo são amparadas por leis votadas nos parlamentos. No Brasil, a punição aplicada pelos prefeitos é puro arbítrio. Bolsonaro perdeu; o bolsonarismo vive.</p><p>Demétrio Magnoli é sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhcBaaG8v3Gv5FnDeKFqxAyolHKDgpMY-Qzryr1unN-feBkfVMnawpuRlqfZsft8u9zzgxCwKd90LfGWx9PhsJuiJ2dBHaqQ4ZitgKWipLSslg21NHG9Xx688d7kbLaPk2v15RM/s768/162683454360f7866f3f9b2_1626834543_3x2_md.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="476" data-original-width="768" height="396" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhcBaaG8v3Gv5FnDeKFqxAyolHKDgpMY-Qzryr1unN-feBkfVMnawpuRlqfZsft8u9zzgxCwKd90LfGWx9PhsJuiJ2dBHaqQ4ZitgKWipLSslg21NHG9Xx688d7kbLaPk2v15RM/w640-h396/162683454360f7866f3f9b2_1626834543_3x2_md.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-60176880492291895862021-07-18T19:19:00.005-03:002021-07-18T19:19:22.523-03:00 Dúvida atroz<p>A difícil situação em que se encontra hoje o presidente da República, com 51% de avaliação negativa do governo, 54% favoráveis ao impeachment e rejeição eleitoral batendo na casa dos 60%, anima e ao mesmo tempo impõe um dilema aos que articulam candidaturas ditas de centro: bater em quem desde já, Lula ou Bolsonaro? Há quem já tenha a resposta, como Ciro Gomes (PDT). Há também os que concordam com ele e vejam o ex-presidente como alvo preferencial. Mas há quem prefira investir prioritariamente no derretimento do atual, a ponto de tornar a hipótese de uma desistência — hoje impensável, mas compatível com o apreço presidencial pelo teatro da conturbação — em algo factível. Ao que tudo indica, só o tempo será capaz de construir um consenso. Se for possível chegar a ele, claro. Por ora, cada qual vai seguindo a sua trilha. Os dois personagens posicionados na linha de tiro devido à condição de preferidos nas pesquisas não escondem o desejo de se enfrentar sem os empecilhos de terceira, quarta ou quinta via, escreve Dora Kramer na edição desta semana da revista Veja. Continua a seguir.</p><p><br /></p><p>Isso porque julgam o outro detentor da maior rejeição. A última pesquisa do Datafolha mostra que 59% dos consultados prefeririam não votar em nenhum dos dois. O índice era de 54% há dois meses. Essa linha consolida a ideia da alternativa e já conquista adeptos.</p><p>O presidente do PSD, Gilberto Kassab, por exemplo, era um descrente dessa possibilidade, mas passou a defendê-la e até a apresentar um nome à mesa de negociações: o do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Estimulado, Pacheco recentemente saiu do coma institucional e passou a marcar distância de Jair Bolsonaro.</p><p>Kassab por ora não direciona artilharia contra Lula e, a fim de firmar posição contra o presidente, chega a manifestar preferência pelo petista na hipótese de um segundo turno entre os dois. Já o presidente do DEM, ACM Neto, em dúvida, acha que essa é uma questão ainda em aberto. O presidente do PSDB, Bruno Araújo, considera politicamente mais eficaz o centro trabalhar para tirar o petista (ou quem venha a concorrer sob o patrocínio dele) da disputa final.</p><p>Na visão do tucano, embora “o Brasil seja antipetista”, Lula é “maior que o partido”. Além disso, tem uma situação político-eleitoral bastante mais estável que Bolsonaro e não tem sido submetido ao desgaste que acomete o presidente. Sendo potencialmente mais forte, deveria ser tratado pelos adversários com rigor.</p><p>Em suma, uns acreditam que Bolsonaro derreterá por gravidade, enquanto outros acham arriscado deixar Lula correr à vontade, livre dos obstáculos do contraditório. A despeito das opiniões divergentes sobre momentos, pessoas e oportunidades, há dois pontos em comum no grupo que procura abrir um espaço do meio junto ao eleitorado.</p><p>Todos concordam com o seguinte: primeiro, o jogo só começa mesmo quando os candidatos se apresentarem ao público, a fim de que uma disputa para além de Lula e Bolsonaro deixe de ser mera hipótese. Portanto, haveria tempo para a tomada de posições personificadas em nomes. Segundo, será um erro mortal repetir 2018, quando as forças de centro não conversaram entre si nem foram em busca do eleitor.</p><p>Na realidade, ficaram postas em sossego. De um lado, com um misto de perplexidade e descrença quanto à possibilidade de alguém tão fora do esquadro como Bolsonaro virar presidente da República. De outro, certas de que o antipetismo, naquela altura no auge, daria conta de tirar o PT do páreo. Por esse raciocínio, estariam no segundo turno sem fazer força.</p><p>Uma grandeza em matéria de autoengano e descolamento dos partidos em relação a sentimentos preponderantes e latentes na sociedade. A disposição de não repetir tamanho equívoco é a mola mestra do chamado “polo democrático”, cujos movimentos são avaliados por dois diferentes pontos de vista. Com excessiva lentidão, na avaliação de quem vê nisso sinal de fracasso antecipado, ou com cautela estratégica, na concepção otimista dos articuladores mais convictos desse campo.</p><p>Há razoabilidade em ambas as maneiras de pensar. É verdade que o centro não terá êxito se considerar suficiente se apresentar apenas como uma manifestação de equidistância entre extremos desprovida de conteúdo.</p><p>Mas é verdade também que o Brasil não avançará deixando-se aprisionar por uma agenda regressiva de acertos de contas com o passado.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-rHemv8inEgOQ7ggCHlV71aJZBqeqhOhyiK20CL1FLpsCoaI44wS7gK9E8nwJTfA-uXsh61f_v5UBlpi__h7VzI3BSXvrTKNoAB5z55ooGJb4V8di2vCx0iZhEQrqGbaq60KG/s680/Bolsonaro-x-Lula-final-1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="453" data-original-width="680" height="426" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-rHemv8inEgOQ7ggCHlV71aJZBqeqhOhyiK20CL1FLpsCoaI44wS7gK9E8nwJTfA-uXsh61f_v5UBlpi__h7VzI3BSXvrTKNoAB5z55ooGJb4V8di2vCx0iZhEQrqGbaq60KG/w640-h426/Bolsonaro-x-Lula-final-1.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-32791799566570754352021-07-18T19:11:00.004-03:002021-07-18T19:11:25.574-03:00 O “alarido” que sacode Cuba<p>“Estava na cara que iria acontecer isso”, diz, referindo-se aos protestos, o jovem Ariel, sentado em um bicitáxi em Havana Velha e apontando para uma longa fila diante de uma loja que opera com a moeda nacional, de onde acabam de sair com detergente. Há calma no bairro, mas a reclamação de Ariel é a de muitos cubanos, sejam eles trabalhadores do Estado ou do setor privado: pedalando ou sem pedalar, com uma renda normal não dá para viver. “Se você somar a isso a falta de remédios, o desabastecimento absoluto, as filas de horas, os blecautes e as décadas de sucessivas crises, tudo sem esperanças de que a coisa melhore, aí está a bomba”, opina o jovem, que não quer dar seu sobrenome e diz ter visto “de longe” as manifestações que sacudiram no domingo passado a capital e várias outras cidades de Cuba, causando uma verdadeira comoção nacional. “As pessoas não aguentam mais. Nunca tinha acontecido uma explosão parecida”, assegura. Um percurso por Havana Velha e Havana Central cinco dias depois dos protestos mostra as feridas abertas, e também o magma que sai delas. No Malecón, em cada esquina de seus sete quilômetros há dois ou três policiais. Agentes de forças especiais com uniformes pretos ―que impressionam― aparecem às vezes pelo Paseo del Prado, San Lázaro e outras ruas importantes que foram palco dos incidentes do domingo e segunda-feira, onde houve episódios violentos, assaltos a lojas, um morto, dezenas de feridos dos dois lados e centenas de detidos, escrevem Yander Zamora e Mauricio Vicent de Havana para o El País. Continua a seguir.</p><p><br /></p><p>De vez em quando, em alguns parques e espaços públicos se veem grupos de civis gritando lemas para reafirmar sua adesão à revolução, e é verdade que há tranquilidade nas ruas, mas também que permanecem as longas filas de sempre para comprar pão, alimentos, artigos de primeira necessidade e, agora, até nas lojinhas que consertam celulares, onde se instalam aplicativos VPN para acessar a internet, pois a rede não funciona, ou funciona muito mal, desde os protestos.</p><p>A meia hora de carro de Havana Velha, no bairro de La Coronela, Yunior García recebe os jornalistas em seu pequeno apartamento de um maltratado edifício. “As pessoas começaram a abrir os olhos, estão perdendo o medo e dispostas a fazer alguma coisa para que as coisas mudem, principalmente os jovens, já é um problema geracional”, afirma. García, de 38 anos, é dramaturgo e foi um dos líderes da manifestação de 27 de novembro em frente ao Ministério da Cultura, onde se reuniram 300 pessoas, na maioria criadores, para exigir liberdade de expressão e o fim da perseguição contra dissidentes. Hoje ele está sob medida cautelar de prisão domiciliar, depois de ser detido no domingo em uma manifestação diante do Instituto Cubano de Rádio e Televisão, realizada por solidariedade com aqueles que saíram às ruas no povoado de San Antonio de los Baños, a centelha que desencadeou a onda de manifestações.</p><p>García foi liberado na segunda-feira. Ele não duvida que o Governo pode conseguir conter os protestos com o uso da força policial e o aparecimento, pela primeira vez, de forças de choque nas ruas ―“algo novo para os cubanos”―, mas considera que o que ocorreu marca “um antes e um depois” na ilha. “Isto é uma crise geral, já há uma ruptura em uma parte da sociedade que não confia no Governo e que não tem medo de expressar o que pensa”, acrescenta.</p><p>“Só colocaram um remendo em um vazamento que é irreversível, mas não mudaram a peça quebrada”, opina o dramaturgo. “Podem conter a situação com a falta de informação, com o corte da internet, com a repressão policial, mas será por algum tempo. Se não houver mudanças reais concretas, estruturais, objetivas, não reformas cosméticas, as coisas em Cuba continuarão piorando.” Para ele, é preciso abrir espaços de inclusão na sociedade e democratizar o país, e não apenas no aspecto político. “Faz tempo que muitos economistas de prestígio reivindicam transformações radicais para melhorar a vida das pessoas e para que o país progrida, mas não são levados em conta”.</p><p>Ricardo Torres é pesquisador do Centro de Estudos da Economia Cubana, e como muitos de seus colegas vem alertando há muito tempo que a situação é grave e é necessário acelerar as mudanças. “Não tenho dúvidas de que o que se deixou de fazer, ou se fez mal e pela metade na última década, tem muito a ver com a crise atual. Muitos de nós tínhamos um senso de urgência que, lamentavelmente, não foi compartilhado pelas autoridades. Faltou vontade política, e também existem lacunas em competências técnicas essenciais no funcionalismo público”, assinala. Como os demais compatriotas, Torres viveu com angústia os acontecimentos violentos dos últimos dias, embora, como Ariel em seu bicitáxi, considere que era possível prever que algo iria acontecer. “Pessoalmente, eu via que estavam se acumulando muitas insatisfações que não eram canalizadas. As dificuldades são tão agudas que, para muitos, lembram os piores momentos do início dos anos noventa.”</p><p>O que ocorreu nos últimos dias sacudiu o país como nunca, e inúmeros artistas e personalidades da cultura se pronunciaram abertamente de forma crítica sobre a violência policial vista nas ruas. “A construção deste país tem de ser através do consenso, não da violência e da repressão. Uma Cuba em que a tranquilidade e a unidade tenham de ser preservadas com as ruas nas mãos de tropas especiais será uma Cuba quebrada”, disse o diretor de cinema Fernando Pérez, resumindo o sentimento de muitos criadores.</p><p>O abalo também foi sentido nas mais altas instâncias políticas. No sábado, diante da Embaixada dos Estados Unidos, no Malecón, foi convocada uma manifestação de apoio na qual estiveram Raúl Castro e o presidente cubano, Miguel Díaz-Canel, que voltou a acusar Washington de estar por trás dos protestos e de manipular as redes sociais para provocar revolta e caos no país. Há dois dias, as autoridades anunciaram que permitirão a importação de alimentos e remédios sem impostos por viajantes que cheguem ao país, uma primeira medida na direção de aliviar a situação, mas claramente insuficiente.</p><p>“Parece bem possível que tudo que ocorreu em Cuba desde 11 de julho tenha sido incentivado por um número maior ou menor de pessoas opostas ao sistema, algumas inclusive pagas, com a intenção de desestabilizar o país e provocar uma situação de caos e insegurança”, escreveu o romancista cubano Leonardo Padura de sua casa no bairro popular de Mantilla. “Também é verdade que depois, como costuma acontecer nesses eventos, ocorreram atos oportunistas e lamentáveis de vandalismo. Mas creio que nem uma nem outra evidência tira um pingo de razão ao alarido que escutamos. Um grito que também é resultado do desespero de uma sociedade que atravessa não só uma longa crise econômica e uma crise sanitária pontual, mas também uma crise de confiança e uma perda de expectativas”, acrescentou o escritor.</p><p>Padura foi surpreendido pelos incidentes quando estava assistindo à final da Eurocopa pela televisão. “Interromperam a transmissão para colocar as declarações de Díaz-Canel no povoado de San Antonio de los Baños”, conta, acrescentando que desde então praticamente não pôde se conectar à internet. Indagado sobre como está seu bairro agora, diz que tranquilo, “com a mesma fila de sempre em frente à loja do quarteirão”. O que ocorreu, acredita, é uma “clara advertência” ao Governo e este deveria ouvi-la. “O que se impõe são as soluções que muitos cidadãos esperam ou exigem, alguns se manifestando nas ruas, outros opinando nas redes sociais e expressando seu desencanto ou discordância, muitos contando os poucos e desvalorizados pesos que têm em seus empobrecidos bolsos e muitos, muitos mais, fazendo filas de várias horas em um silêncio resignado, sob sol ou chuva, com pandemia incluída, filas nos mercados para comprar alimentos, filas nas farmácias para comprar remédios, filas para conseguir o pão nosso de cada dia e para tudo que se possa imaginar e que é necessário”. Padura, Torres, Ariel e Yunior García coincidem em algo mais, e nisso concordam com as autoridades: se os EUA querem realmente ajudar Cuba a evoluir, devem eliminar imediatamente o embargo econômico, que agrava a penúria. “Com sua política, Washington se transforma no principal aliado do Governo”, afirma Yunior de seu recolhimento no apartamento de La Coronela.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgsRbEPZMk5XJVAtIMf8n2kSJbfpcrzu19oqj05EQVWnOSclUU0ViaYJX1ElVq9uMODfE6Kv7E-NQJtN0rUYgEd3uiUAVkjaMoEmCUXyp_E7ZXHS8lVqUr-6AfQd2WKZJ6Gdibl/s1960/WBDMYCSTJVFGJAYTVB7KTHAXP4.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1289" data-original-width="1960" height="420" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgsRbEPZMk5XJVAtIMf8n2kSJbfpcrzu19oqj05EQVWnOSclUU0ViaYJX1ElVq9uMODfE6Kv7E-NQJtN0rUYgEd3uiUAVkjaMoEmCUXyp_E7ZXHS8lVqUr-6AfQd2WKZJ6Gdibl/w640-h420/WBDMYCSTJVFGJAYTVB7KTHAXP4.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-56064627856164931372021-07-18T18:58:00.003-03:002021-07-18T18:58:12.381-03:00 Um religioso no STF?<p>A obsessão materialista, porque oportunista, do presidente da República de indicar um evangélico para uma vaga no Supremo Tribunal Federal cria, em relação à escolha, o indevido pressuposto da instrumentalização política de igrejas e seitas. Nunca houve, em relação ao Supremo, a preocupação de indicar alguém de determinada religião para compô-lo. No que diz respeito à crença dos indicáveis, a religião é atributo privado. O professante de qualquer religião, ou de nenhuma, sendo profissionalmente vinculado ao direito e com reconhecido saber jurídico, está habilitado à indicação ao Senado para que o examine e eventualmente o confirme. A verificação de competência não passa pela teologia. Ministros na história do STF, ou mesmo todos, têm sido de confissão supostamente católica, embora nenhum tenha sido um candidato do catolicismo, um pregador que dividisse a cátedra com o púlpito. Nenhum foi recrutado na hierarquia católica, escreve José de Souza Martins em sua coluna no Valor, publicada dia 16/7 no jornal. Continua abaixo.</p><p><br /></p><p>É possível até que algum tenha sido convictamente acatólico, como eram definidos os não católicos no passado. O que não sabemos, simplesmente, porque a religião ou não religião de cada ministro tem sido cuidadosamente mantida fora da pauta de seus julgamentos.</p><p>Com a República, o Estado brasileiro deixou de ser um Estado confessional. Nos tribunais, os juízes que professam alguma religião a deixam do lado de fora da instituição. Colocar uma identidade entre parênteses para não perturbar outra que com ela possa conflitar é um requisito do funcionamento do Estado moderno.</p><p>O problema que se põe, no caso da indicação de um evangélico para o STF, como pretende o presidente da República, é que o nome cogitado e já de domínio público não é apenas protestante, mas pastor ativo de uma igreja presbiteriana de Brasília.</p><p>Terá a sociedade brasileira a segurança de que no trânsito semanal do púlpito para a cadeira de ministro da Corte Suprema os respectivos valores e orientações ficarão devidamente confinados e separados? De modo que a dupla personalidade do ministro não leve a uma troca de lugares de uma e de outra?</p><p>Os valores da Justiça devem ser universais. Os que a ela recorrem precisam da garantia da neutralidade dos juízes e da universalidade do direito que os orienta.</p><p>O conflito de religiões na estrutura do Estado se manifestou no Brasil já em 1891. Um convocado para servir na sessão do júri do Rio de Janeiro, Miguel Vieira Ferreira, militar e pastor, recusou-se a servir como jurado se, nas sessões, permanecesse na sala do júri um crucifixo. Invocava a separação entre Estado e religião, já decretada.</p><p>Houve reações de rua à exigência cidadã. O efeito foi a entronização de Cristo nas salas de júri de todo o país. A sala do plenário do STF é ornada por uma cruz, o que já foi objeto de desconforto cauteloso de um dos ministros atuais.</p><p>O pastor levantara, pois, a questão da neutralidade religiosa da Justiça no regime republicano e, implicitamente, a da própria composição do STF. Os ministros julgam sob tutela da lei, e não do símbolo ou das convicções de uma religião.</p><p>Numa sociedade pluralista quanto às ideologias e quanto às religiões, composta também de gente filiada a confissões religiosas não cristãs, é uma aberração que alguém seja indicado para o Supremo por motivo religioso e por ter perfil religioso. Como ficaria um judeu, um muçulmano, um adepto do candomblé, se julgado por um tribunal simbolicamente inspirado por uma religião que lhe é historicamente adversa? Ou se ateu?</p><p>Em sermão numa igreja evangélica de Goiânia, o candidato de Bolsonaro a ministro declarou: “Nós não podemos nos curvar a qualquer poder que não seja o poder de Deus”. Na verdade, no regime republicano, os que professam uma religião têm o direito, na vida privada, de dar o testemunho de sua fé. Mas não têm o direito de se valer das instituições públicas para fazê-lo.</p><p>A separação dos poderes foi proclamada pelo próprio Cristo. Está lá em Mateus 22:21: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Evangélicos têm utilizado esse versículo para justificar o autoritarismo bolsonarista. Na verdade, o César do versículo, na leitura moderna, é o Estado e suas instituições, e não o governante. Nesse sentido, “Deus é republicano”. Para os seguidores de Calvino, pai fundador da religião que o candidato a ministro professa, o republicanismo e o respeito às suas instituições foram a garantia do direito à sua convicção religiosa.</p><p>Na sociedade moderna, cristãos e não cristãos têm assegurado o direito de professarem suas religiões enquanto cidadãos. A cidadania é a garantia desse direito e a exigência de que aquele por ele protegido não transformará o poder de César em poder de Deus.</p><p>José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “No Limiar da Noite” (Ateliê, 2021).</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjG3U-7sBheAYBqHLlheMS13eJbbOt_0bA4DCAQ-J_2v5Pt7hI6Sq5AEmaEjnjGgM1OTFGdcPGlFAIRww6jnTZNRX3icrvdS-oIYTsX891UBgp1FcjTRflwCta0zUj8V8SgTuZM/s984/foto16cul-201-social-d4.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="728" data-original-width="984" height="474" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjG3U-7sBheAYBqHLlheMS13eJbbOt_0bA4DCAQ-J_2v5Pt7hI6Sq5AEmaEjnjGgM1OTFGdcPGlFAIRww6jnTZNRX3icrvdS-oIYTsX891UBgp1FcjTRflwCta0zUj8V8SgTuZM/w640-h474/foto16cul-201-social-d4.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-68916632819884051702021-07-18T18:38:00.006-03:002021-07-18T18:38:38.648-03:00 Bolsonaro namora o abismo<p>Uma das qualidades mais importantes de um governante é a sua capacidade de reduzir o impacto das crises. Todo governo passa, em maior ou menor medida, por períodos turbulentos, e esse fenômeno político deveria ser tratado de maneira estratégica. Bolsonaro está trilhando um caminho inverso: aposta sempre no confronto e no acirramento dos ânimos quando há denúncias ou decisões de outros Poderes diferentes das desejadas pelo chefe do Executivo federal. No fundo, o presidente tem preferido namorar o abismo a atuar pela redução de danos. As falas radicalizadas e o comportamento beligerante de Bolsonaro não mudam o cenário básico do curto prazo: os próximos meses serão muito difíceis para o governo. A lista de problemas é grande. A CPI ocupará ainda grande parte do segundo semestre, trazendo muitas descobertas de inépcia e corrupção na condução da pandemia, para ao final provavelmente propor que o presidente seja julgado pelo crime de prevaricação, o que necessariamente gerará uma votação na Câmara federal. No front econômico, a inflação e o desemprego continuarão em patamares altos, o que se soma à elevação trágica da pobreza a níveis recorde. A crise hídrica e, consequentemente, de energia estará num momento decisivo, gerando aumento de preços e incertezas na economia. Também ocorrerá uma nova temporada de queimadas e desmatamento em larga escala, piorando a imagem internacional do Brasil, com efeitos geopolíticos e até no fluxo de capitais, escreve Fernando Abrucio no Valor, em texto publicado dia 16/7 no jornal. Continua abaixo.</p><p><br /></p><p>A conjunção de fatores negativos já alimentaria, por si só, mais manifestações pelo impeachment e a perda de popularidade presidencial. Mas o recrudescimento da crise e a piora no humor do eleitorado contam com a ajuda de Bolsonaro, que aumenta os incêndios em vez de apagá-los. Embora haja melhores perspectivas para o governo no ano que vem, a bonança não virá se a tempestade inundar todo o sistema político e a sociedade de brigas e ressentimentos. Aqui vale anotar: dependendo do que for feito nos próximos meses, a maior parte do eleitorado desejará votar contra o modelo bolsonarista mesmo que a economia e a situação da pandemia melhorem em 2022. A percepção do eleitor pode seguir uma lógica bola de neve difícil de romper com melhorias pontuais.</p><p>A opção pelo namoro com o abismo só tem dois resultados possíveis: ou se leva até o fim a estratégia beligerante e autoritária, o que significa a quebra democrática em alguma medida, ou haverá uma multiplicação dos descontentes com o governo, tanto em termos institucionais como no campo da sociedade - em outras palavras, o segundo resultado significa menor popularidade e mais grupos concorrendo contra o projeto de reeleição. Em ambos os casos, Bolsonaro prefere o jogo de soma-zero, no qual ele ganha tudo e seus adversários perdem completamente. Certamente é uma estratégia kamikaze de governar.</p><p>O primeiro resultado possível é a aposta no discurso autoritário como remédio para a crise. Pode ser que o presidente acredite que ameaçar a democracia seja uma forma de emparedar os adversários e moderá-los no combate ao governo. O problema é que se abre a porta para uma saída radical e qualquer tipo de quebra democrática só aprofundará os problemas do país. Não há o menor clima internacional ou nacional para um golpe de Estado e fazê-lo gerará enorme desorganização econômica, social e política.</p><p>A trilha autoritária está no DNA do bolsonarismo, mas a opção sempre foi pelo caminho húngaro e venezulelano: o enfraquecimento paulatino das instituições democráticas, com eleições plebiscitárias favorecendo o líder na condução das mudanças incrementais em prol do autoritarismo. Essa estratégia populista que vem sendo adotada em alguns países depende muito de um sucesso inicial na economia e na condução dos principais assuntos coletivos, com apoio popular razoavelmente alto. No momento, e provavelmente até o fim do mandato, Bolsonaro não terá essas condições a seu favor, após um fracasso rotundo na luta contra a pandemia, cujas consequências sociais e econômicas não serão estancadas em curto espaço de tempo.</p><p>A aposta numa quebra democrática abrupta e num cenário de crise é politicamente desastrosa. Pode-se até classificá-la pelo conceito de Marcha da Insensatez, como descrita no célebre livro da historiadora Barbara Tuchman. Ela mostra como em vários momentos da história os governantes e seus aliados foram míopes e irracionais, cavando suas próprias covas. Um golpe no Brasil de hoje, comando por Bolsonaro e apoiado pelos militares (inclusive os das polícias estaduais), traria uma sensação imediata de vitória e poder aos extremistas bolsonaristas e ao próprio presidente, porém, teria muitos adversários na sociedade e no mundo político.</p><p>O próprio roteiro de ações de um golpe bolsonarista revela o enorme contingente de grupos que seriam negativamente afetados. O caminho mais provável dessa opção seria mudar os ministros do Supremo Tribunal Federal, cancelar as eleições de 2022 - ou expurgar todos os adversários do bolsonarismo, que podem ser quase todos os políticos atuais -, reduzir a liberdade de imprensa e de manifestação, impor uma linha extremamente conservadora à programação das rádios e TVs, aumentar a militarização do governo, além de isolar-se internacionalmente frente aos Estados Unidos, à Europa e grande parte da América Latina, sem que isso traga o apoio da China.</p><p>Não se pode ter ilusões: seriam esses os passos de um autoritarismo comandado pela família Bolsonaro. Os sócios principais desse projeto seriam as Forças Armadas, de modo que vale a pena suas lideranças refletirem desde já se não estariam entrando num caminho sem volta - a Marcha da Insensatez definida por Tuchman. É preciso reforçar que o Brasil sofreria muita pressão internacional, provavelmente até com embargos. Afinal, Biden seria muito pressionado para que não haja uma segunda Venezuela na América do Sul - e, no caso, muito maior e mais importante. O dia seguinte dessa aventura seria um grande ajuste de contas dos militares com a sociedade brasileira, exatamente o que a Lei de Anistia, promulgada em 1979, evitou que ocorresse em relação aos crimes da ditadura militar.</p><p>Oxalá não seja esse o caminho derivado do namoro de Bolsonaro com o abismo. O segundo resultado possível dessa postura é menos danoso ao país, mas muito ruim ao governo, embora o presidente insista nesta linha beligerante de ação para enfrentar a crise atual. Quanto mais apostar em pautas que enfraqueçam as instituições democráticas, mais adversários são criados ou se aliam entre si contra o projeto bolsonarista.</p><p>A análise das últimas ações do presidente torna mais claras as consequências de sua estratégia. Utilizar palavras chulas e argumentos mentirosos para falar de ministros do STF favorece ter decisões judiciais contrárias ao governo e aos aliados bolsonaristas. Se Bolsonaro está descontente e age de forma irracional contra o ministro Barroso, sinto informar que será muito mais complicado quando Alexandre de Moraes assumir o TSE. Dele, poderá vir alguma coisa muito forte no inquérito das fake news e atos antidemocráticos, atingindo o núcleo do bolsonarismo que comanda a comunicação política e as redes sociais. E arroubos autoritários não mudarão essa sentença.</p><p>Colocar em questão o modelo eleitoral é um duplo erro. Primeiro, porque são reduzidas as chances de se aprovar a proposta de voto impresso. Será muito difícil aprovar na Câmara e quase impossível no Senado, uma casa legislativa que fica cada vez mais longe do governo quanto mais o presidente multiplica suas ofensas pessoais contra membros da CPI. Segundo, porque dizer que não haverá eleições com o atual modelo é criar um pânico desnecessário em toda a classe política, especialmente governadores, deputados e senadores que vão buscar a reeleição em 2022. Como o golpe de 1964 ensinou, os políticos que apoiaram inicialmente o regime militar não ficaram imunes de posteriormente perderem seus postos (com cassações) ou as chances de concorrer às eleições. Arthur Lira não segurará o processo de impeachment se a maioria dos parlamentares perceber que não haverá eleições.</p><p>Seguir o modelo beligerante em meio à crise pode servir para segurar o público mais fiel do bolsonarismo, mas esse contingente é muito pequeno para garantir chances de reeleição. Pior do que isso: a cada radicalização discursiva, colocando a democracia em risco, perde-se mais apoio social. Gilberto Kassab, um dos políticos mais argutos do país, definiu bem esse fenômeno: o presidente está atemorizando os eleitores. Com isso, mesmo que a crise sanitária e econômica se reduza fortemente no ano que vem, uma grande parte do eleitorado poderá rechaçar definitivamente o voto em Bolsonaro. Não se pode desprezar o tamanho desse efeito bola de neve na percepção do eleitor.</p><p>Para quem apoia a estratégia bolsonarista de enfrentar a crise, sugiro o seguinte trecho do filósofo Friedrich Nietzsche: “Se olhares demasiado tempo dentro de um abismo, o abismo acabará olhando dentro de ti” (Aforisma 146 - “Além do bem e do mal”). Em poucas palavras, quem namora o precipício, ao final cai nele. A questão é saber se Bolsonaro vai conseguir abandonar essa estratégia ou vai preferir seguir um caminho que só pode levar ao autoritarismo, com graves custos ao país e aos seus apoiadores, ou à decadência política.</p><p>Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas, escreve neste espaço quinzenalmente</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMQ4dx5kpD-1fxB-MOyC6TJJdyDdeHFsMcFSVoULx3J1LoueYFrHlee_BPeop6kt_DtRkLYR1zyVtFZb66R5y1wpwfWzdtvm6Bg2-E7XgHijf7HBKHDZox9eFPVGvRWTUBDKMn/s984/foto16cul-501-respublica-d6.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="528" data-original-width="984" height="344" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMQ4dx5kpD-1fxB-MOyC6TJJdyDdeHFsMcFSVoULx3J1LoueYFrHlee_BPeop6kt_DtRkLYR1zyVtFZb66R5y1wpwfWzdtvm6Bg2-E7XgHijf7HBKHDZox9eFPVGvRWTUBDKMn/w640-h344/foto16cul-501-respublica-d6.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-59426155382708725432021-07-18T18:33:00.005-03:002021-07-18T18:33:56.820-03:00 Samuel Wainer, um jornalista vaidoso atacado pela direita e pela esquerda<p>Samuel Wainer, o jornalista e empresário que fundou o “Última Hora”, já foi objeto de diversos livros. O mais recente, “Samuel Wainer: o homem que estava lá”, de Karla Monteiro (Companhia das Letras, 576 págs., R$ 71,92), é surpreendente. Trata do jornalista, que é o que os leitores vão procurar, mas cuida também do lado pessoal. Foram justamente as cartas e o diário de Bluma Chafir e as memórias de Danuza Leão, duas mulheres-chaves na vida de Wainer, que lhe deram uma nova dimensão, mais rica e variada. Sua única paixão foi a devoção aos três filhos. Não demonstrava ciúmes, nem preocupação com compromissos pessoais. Como diz a autora, “culpa, remorso, arrependimento” nunca estiveram no vocabulário de Wainer. E ele nunca foi um homem fisicamente corajoso: confessava horror à violência. Bluma Chafir, judia de origem, estudou contabilidade e mantinha os pés no chão. Conhecia as maluquices de Wainer com as contas. Quando os dois brigavam, invariavelmente, era por alguma insensatez financeira do marido. Danuza Leão, sua segunda mulher, considera Wainer um péssimo administrador. Ele próprio dizia que não era um bom negociante. “Esbanjador incorrigível”, era duro na negociação, mas frágil na concepção final, escreve Monteiro. Vale a leitura desta ótima resenha de Matías M. Molina, publicada no Valor dia 16/7. Continua a seguir.</p><p><br /></p><p>Wainer, que ficou no Rio durante décadas, não tinha nenhuma intimidade com o mar, nem com a areia; não sabia nadar nem como enfrentar as ondas. Também não sabia investir para o presente, nem construir um lar. Colocava o dinheiro nos gastos pessoais — dezenas de camisas da moda, meias, sapatos, paletós, bebidas que não se encontravam no Brasil. Era, para os amigos, “perdulário, esbanjador incorrigível”. Em uma viagem a Roma, comprou “três dúzias de camisas finíssimas, seis dúzias de pares de meias de fio-escócia e um jogo de malas Gucci”.</p><p>Sua razão de viver era fazer o jornal. Monteiro escreve que Samuel Wainer dava mais atenção ao trabalho do que ao casamento, insinuando que ele empurrava a mulher para algum companheiro.</p><p>Dos vários livros sobre Wainer, “Minha razão de viver” é uma obra póstuma, que ele não viu publicada nem sequer escrita e que nos deixa algo inseguros; consta como uma autobiografia que ele não leu. O livro recebeu um violento ataque do colunista político Carlos Castello Branco, mas também elogios de Paulo Francis, que reclamou dos bilionários que receberam subsídios do Banco do Brasil e, ao contrário de Wainer, nunca pagaram. Francis reclama de Augusto Nunes, o editor, dizendo que ele tinha “a voz inconfundível de Samuel Wainer. Não conseguiu ouvi-la”.</p><p>“Lacerda e Wainer”, de Ana Maria de Abreu Laurenza, e “Duas vozes de Wainer”, de Joëlle Rouchou, são bons livros que destrincham um lado parcial de sua vida. “Botando os pingos nos is”, de Rivadavia de Souza, é a obra de um inimigo contumaz. A lista de obras sobre o jornalista continua.</p><p>Para as mulheres, Wainer era charmoso e encantador. Ele fez um jornal popular, uma folha “varguista”, mas não um jornal governista. Deu espaço para os desenhistas, para charges e os folhetins, que tinham desaparecido. Antes dele, a técnica da diagramação quase não existia. Foi ele quem equipou o departamento fotográfico, o mais completo da imprensa. Ele tinha uma enorme capacidade para animar uma equipe e mania de demitir funcionários.</p><p>Foi ele quem convenceu Nelson Rodrigues a fazer, no começo, uma crônica diária com as vagabundas, os barnabés, os comerciários, “A vida como ela é...”. Persuadiu Paulo Francis a deixar de lado uma coluna de teatro por uma crônica diária política candente. Deu espaço às crônicas de Antônio Maria; a Adalgisa Nery, para colocar em letras de forma toda sua irritação. Joel Silveira disse que foi Wainer quem o convenceu, em “Diretrizes”, a ser repórter, e não literato. Em São Paulo, conquistou Ricardo Amaral.</p><p>No fim dos anos 1960, ele fez um jornal com poucos recursos e o encheu de jovens como Nelson Motta, Tarso de Castro, Luís Carlos Maciel, Paulo Alberto Monteiro de Barros. Rubem Braga esqueceu dos quase 30 anos de briga e voltou a colaborar.</p><p>Monteiro põe a família Wainer na Bessarábia, então no Império Russo, onde nas áreas dos judeus não se podia cultivar a terra — é hoje um território da Moldávia. Ele nasceu em Yedinitz, uma cidade com algo mais de 10 mil habitantes e seis sinagogas. Quando Samuel Wainer tinha nove anos, a família emigrou para o Brasil. Desde menino, tinha o pendor da liderança, não gostava de estudar, mas apreciava a leitura. Em 1928, foi ao Rio e passou a carregar tapetes e ajudar os irmãos. Estudou farmácia e depois direito, sem conseguir formar-se. Eram nove irmãos, mas só uma nasceu no Brasil.</p><p>Em 1933, ele conseguiu entrar no jornalismo. Trabalhou no “Diário de Notícias”, por indicação de Wolff Klabin, fazendo comentários para o “Diário Israelita”. Vieram mais tarde a “Revista Brasileira”, de 300 páginas, mais da metade traduzida do “Le Mois”; nela Wainer mal traduzia alguns artigos. Foi onde conheceu Antônio de Azevedo Amaral, um célebre colunista conservador.</p><p>Com a entrada na “Revista”, em dezembro de 1933, Wainer casou-se com Bluma Chafir. Era uma jovem que sabia das maluquices de Wainer com as contas — e “o abateu sem fazer força”. Ela, muito bonita, circulava entre os intelectuais, incentivada pelo marido. Wainer sairia da “Revista Brasileira” em 1935 e fez o projeto da “Revista Contemporânea”, que só durou seis edições.</p><p>Azevedo Amaral o convidou para ser o secretário da revista “Diretrizes”, na qual recebia todos os meses 2 contos de réis da Light. Ao lado dos artigos de Azevedo Amaral, que discordava do liberalismo, sufrágio universal, voto direto e que divergia tanto do comunismo como do liberalismo, “Diretrizes” tinha ideias avançadas dadas pelos colaboradores que Wainer levou: Jorge Amado, Rubem Braga, Graciliano Ramos, Santa Rosa, Osório Borba, Carlos Lacerda. Ele contratou os comunistas da “Revista Acadêmica” e faria, no futuro, a melhor revista do Brasil, segundo Monteiro.</p><p>Wainer rompeu com Azevedo Amaral ao dizer-lhe que havia registrado a “Diretrizes” em seu nome — com total falta de honestidade —, embora as despesas fossem pagas pelo sócio. Azevedo Amaral teve que sair da revista, levando com ele os dois contos da Light.</p><p>Divulgou-se a notícia de que Bluma teria um filho de Rubem Braga. Este, alarmado, viajou para o Sul e deixou Bluma fazer o aborto, pago por Wainer, que convidaria a mulher a viver novamente com ele.</p><p>Em janeiro de 1939, Carlos Lacerda, um carismático amigo de Wainer, publicou no “Observatório Econômico” um longo artigo sobre a evolução do Partido Comunista Brasileiro. É possível que nada do que foi publicado fosse confidencial, embora a maneira de descrever alguns problemas do partido pudessem ter chocado os comunistas. Na verdade, não se sabe bem o que aconteceu, mas foi esse o ponto de partida do distanciamento de Lacerda do comunismo. Ele chegou a chorar.</p><p>Wainer não teve dúvidas em receber dinheiro da embaixada da Alemanha, fruto do acordo Molotov-Ribbentrop, chanceleres da URSS e da Alemanha, de 1939. Posteriormente, Lacerda e Castello Branco viram uma traição de Wainer aos judeus, se bem que “Diretrizes” recebeu contribuições da embaixada dos Estados Unidos, com críticas às democracias francesa e britânica. “Diretrizes”, finalmente, voltou a atacar as forças alemãs a partir de junho de 1941, quando invadiram a URSS.</p><p>Em 1941, Wainer transformou “Diretrizes” em uma revista semanal, com a colaboração de Maurício Goulart, que entrou com metade do capital. Foi uma das principais publicações de seu tempo e divulgou algumas das matérias mais candentes. Wainer ficou preso durante 28 dias. “Diretrizes” fechou em julho de 1944 com uma dívida de 200 contos.</p><p>Samuel Wainer foi, então, com Bluma aos EUA, com passagens pagas por Osvaldo Aranha. Nessa viagem, Wainer provou como foi pródigo em seus contatos: Rodolfo Ghioldi, o líder comunista argentino; Allen Hayden, do “Chicago Daily News”; Salvador Allende, que os acompanhou em Santiago; Pablo Neruda etc. Em Nova York, depois de escrever vários artigos, conseguiu um emprego com a ajuda de Nelson Rockefeller, até vir ao Brasil, via o encontro de Chapultepec, no México, onde encontrou Orson Welles. Monteiro engana-se ao dizer que Wainer nunca mais pisaria os EUA. Voltou em 1963.</p><p>No Brasil, em 1945, ele lançou um “Diretrizes” diário, mas foi um fracasso. Com 2 mil a 3 mil exemplares, João Alberto, um dos financiadores e fiador, tomou conta do jornal. O novo diretor de “Diretrizes” foi Osvaldo Costa (mas não foi diretor de “A Gazeta” de São Paulo, como disseram Wainer e Karla Monteiro), que venderia 40 mil ou 50 mil exemplares. Samuel Wainer viajou a Paris.</p><p>Na Europa, foi o único jornalista brasileiro a cobrir o Tribunal de Nuremberg, mas o fez unicamente para o “Diretrizes” diário, além de matérias para vários jornais e para rádio da BBC. Na companhia de Bluma, que também escrevia, viajou o continente europeu. Menos de dois anos depois, quis voltar para o Brasil. Bluma ficou.</p><p>No Brasil, Osvaldo Costa pediu a Wainer que levantasse cem contos para “Diretrizes”. Ele pediu o dinheiro para Drault Ernanny, do Banco do Distrito Federal, e se comprometeu a seis reportagens com elogios para as refinarias particulares, publicadas nos Diários Associados. Wainer entregou os cem contos a “Diretrizes” e assumiu os Diários Associados, onde chefiou a redação de “O Jornal”. O aumento de circulação foi conseguido com o reajuste dos jornalistas, disparando o déficit. Ele voltou a ser repórter e cobriu o surgimento do Estado de Israel.</p><p>Em fevereiro de 1949, para escrever sobre a importação e produção do trigo, ele descolou uma entrevista com Getúlio Vargas na estância Santos Reis. No encontro, Getúlio só falou bem do presidente Eurico Dutra e comentou o editorial do “Correio da Manhã” dizendo que somente as candidaturas do brigadeiro Eduardo Gomes e de Getúlio Vargas estavam “acima das contingências partidárias, eram imposições da opinião pública”. Getúlio respondeu: “Eu não sou um líder político. Sou, isto sim, um líder de massas”. Do brigadeiro afirmou que era em grande nome, um líder moral e tinha por ele o maior apreço. Quando perguntado se aceitaria ser candidato à presidência, Getúlio disse que somente quando voltasse ao Rio, em abril ou maio, responderia a essa pergunta. A entrevista, bem alinhavada, exagerou a ênfase de algumas respostas. Teve grande repercussão. Getúlio gostou do encontro, e Wainer gostou do entrevistado.</p><p>Wainer colocou em “Minha razão de viver” uma conversa que foi considerada a origem da “Última Hora”. Diz que, no dia 2 de fevereiro de 1951, ele teve um encontro com Getúlio em Petrópolis (RJ), do qual, depois de lamentar ausência de jornalistas, surgiu a fundação do jornal.</p><p>O problema é que, nesse dia, Getúlio tinha ficado no Rio. A conversa teria sido vários dias depois, em Petrópolis, quando surgiu o jornal, mas não houve nenhum encontro do novo ministério, nenhuma diretriz do governo Vargas, nada mirabolante. Houve apenas um encontro com poucos ministros dos quais saiu o envio de militares aos EUA.</p><p>Samuel Wainer, contrariando a orientação de Getúlio, usou e abusou do dinheiro dos bens privados e públicos. Ele comprou um edifício de quatro andares na avenida Getúlio Vargas, que pertenciam ao “Diário Carioca”, e incorporou automaticamente as dívidas desse jornal. Imprimiu o jornal durante dois anos, sem pagar, e herdou uma máquina de imprimir de pouca capacidade. O acervo da “Última Hora”, comprado de improviso, saiu por uma fortuna. Bluma, que havia ficado em Paris em 1945, obteve a separação de Wainer em 1949 e morreu de câncer no mesmo ano. Em suas memórias, Wainer fala pouco dela.</p><p>Wainer, que entrava nas salas de ministros de Estado sem se anunciar, se viu na oportunidade de lançar outro jornal, a “Última Hora”, em São Paulo. Um dos patrocinadores foi o conde Francisco Matarazzo. Segundo ele, “Seu Wainer é um grande problema para mim. Quando eu me reúno com os empresários, conta aquelas histórias, fica todo mundo impressionado. No dia seguinte, vai para o jornal e escreve tudo ao contrário do que prometeu para a gente”.</p><p>Um percalço de Monteiro está nos textos dedicados a São Paulo, onde a força de Wainer foi reduzida por disputas pelo controle do jornal com Josimar Moreira de Melo e Sérgio Lima e Silva.</p><p>Ele lançou dois petardos: primeiro o “Flan”, um jornal semanal de alta circulação, que despertou a ira de Assis Chateaubriand, dono do maior império jornalístico da história do Brasil, temeroso de perder o prestígio de “O Cruzeiro”. Uma lamentável “barriga” da “Tribuna da Imprensa”, quando escreveu que a “Última Hora” deveria estar sob intervenção federal, o que era falso. Lacerda, em lugar de desculpar-se, aproveitou para criar uma Comissão Federal de Inquérito da qual foi o principal instigador. A campanha contra a “UH” não era só da direita; o Partido Comunista Brasileiro também lutava contra a “UH”.</p><p>A campanha que Carlos Lacerda fez no rádio e na televisão dizia que os empréstimos de “Última Hora” e empresas afins somavam 285 milhões de cruzeiros — dos quais 25 milhões do Banco do Brasil. A “Última Hora” pagou o Banco do Brasil, mas o mesmo não foi feito pelos atrasos dos outros órgãos de imprensa. Dois pesos, duas medidas.</p><p>Outro enorme problema foi a notícia de que Samuel Wainer era da Bessarábia. Ele desmentiu, mas a venda de jornais despencou. “Fiz horrores para conseguir anúncios, vendi minha alma ao diabo, corrompi-me até a medula”, disse ele, que ficou um período preso. Foi aí, na prisão, que conheceu Danuza Leão. Casou-se com ela em 1954 e teve três filhos: Pinky, apelido de Deborah, Samuca (Samuel) e Bruno. Danuza foi um grande amor, era a deusa da redação. “Não sei o que eu faço para agradar a mulher”, dizia ele. Mas dedicava quase todas as noites ao jornal. Ela foi-se embora com Antônio Maria, colunista da “Última Hora”.</p><p>Depois veio o atentado a Carlos Lacerda em 1954, o cerco a Getúlio Vargas — ele era, no fundo, o verdadeiro objetivo da caçada a Wainer e o seu fim trágico. O jornal continuou recebendo os subsídios dos presidentes Juscelino Kubitschek e depois de João Goulart.</p><p>Samuel Wainer teve a ideia de fazer vários jornais. Surgiram no interior de São Paulo, Belo Horizonte, Rio, Paraná, Rio Grande do Sul, Recife, além de uma edição nacional, tudo como “Última Hora”. Foi seu ponto alto.</p><p>Nos últimos meses de Goulart, Wainer viu a briga da direita e da esquerda e esforçou-se em não publicar as matérias mais polêmicas. Tentou lidar com os principais colunistas como Adalgisa Nery e Paulo Francis. Foi o prestador de contas da burguesia com o Executivo e teria sido, há dúvida sobre isso, o encarregado de levar as malas de dinheiro ao PTB.</p><p>Em 1963, Wainer viajou aos EUA. Teve vários encontros com Lincoln Gordon, o embaixador americano. A cúpula da “UH” acreditava na continuidade do regime Goulart; só ele, Samuel, pensava que era o fim, como foi.</p><p>Com o golpe militar dado, em março de 1964, Wainer preparou sua fuga à embaixada do Chile e depois Paris. Os jornais “Última Hora” foram extintos. Somente o de São Paulo — que seria vendido à “Folha de S.Paulo” — e o do Rio ficaram.</p><p>Um lapso de Karla Monteiro foi dizer que o jornal “Gazeta Mercantil” era propriedade da Fundação Cásper Líbero. A folha era da família Levy. Eu fui editor-chefe da “Gazeta Mercantil” nesse período</p><p>Enquanto no Brasil seus jornais passaram por apertos, Wainer teve em Paris um período com ideias desencontradas: otimista, eufórico e triste, em busca de reconhecimento. Teve a companhia de Danuza e das crianças. E também dos dólares: US$ 140 mil, mais US$ 4 mil mensalmente de “UH”.</p><p>Manteve contatos com a alta burguesia, sonhou em fazer grandes obras, teve os contratos dos jornais e revistas com pagamentos quase de graça. Ele tentou fazer uma revista como a “Europe Modern”, que seria uma versão do “Reader’s Digest”, entrou pelo cano com o cineasta grego Nikos Papatakis. Voltou ao Brasil, em 1977, com uma dívida de US$ 200 mil. No Rio, Wainer declarou que “ser dono de jornal é um poder que deforma. Eu paguei um preço alto, destruí muita coisa à minha volta. Acho que até minha família”.</p><p>Em 1977, seu jornal no Rio foi entregue a Janio de Freitas. Este lutou para pôr a casa em ordem, reduziu os ataques ao governo, combateu as brigas internas, lideradas em parte pelo próprio Wainer. Quando Wainer voltou ao Brasil, Freitas devolveu o negócio, depois de ter dado lucro efetivo pela primeira vez na história.</p><p>Metade da redação trabalhou sem ser remunerada; a outra metade recebia “vales”. Até as máquinas eram muito ruins; a impressão, difícil de ler. Amador Aguiar, do Bradesco, pagou adiantado cinco anos de aluguel de um andar que a “Última Hora” possuía num prédio da avenida Presidente Vargas, no Rio.</p><p>No apagar das luzes, Wainer colocou Washington Novaes para cuidar do jornal. Ele fez uma “folha limpa, elegante. Um jornal bonito”. Mas, na “UH”, a cabeça só podia ser de Wainer. Novaes perdeu o emprego. Ele vendeu o jornal à Metropolitana em 1971, não em 1972 como ele e Monteiro assinalam. Em 1972, Wainer dirigia o “Domingo Ilustrado” dos Blochs. Durou menos de dois anos. Tanto ele como Adolpho Bloch se odiavam. E engavetou o projeto do diário “Agora”.</p><p>Veio para São Paulo. Como disse Pinky, a filha: “em São Paulo, uma cidade de imigrantes, meu pai recuperou a autoestima”. Ele editou durante quase dois anos a “UH”, por influência de Octavio Frias de Oliveira, da “Folha de S. Paulo”. Depois foi dirigir “Aqui São Paulo”, semanal. Mas perdeu circulação e a confiança do Paulo Egídio Martins, governador de São Paulo, o maior acionista, e fechou.</p><p>Finalmente, ganhou uma coluna na “Folha de S. Paulo”, por obra de Cláudio Abramo, em 1977, quando retomou prestígio e autoridade e declinou um acerto com Carlos Lacerda, que morreu.</p><p>Wainer, com os velhos problemas de saúde, morava num modesto apartamento, rodeado de homens e mulheres. “Para mim, era como um Deus”, disse Antônio Prata. “Samuca, sempre de pé, como um gato”, assinalou Paulo Francis.</p><p>Morreu em outubro de 1980, vítima da tuberculose e do cigarro. Tarso de Castro: “Samuel era cavalo solto, dos bons, dos belos, dos insuportáveis”. Otto Lara Resende: “O que sempre admirei em Samuel Wainer foi sua obstinada teimosia de viver e sua inesgotável capacidade de reinaugurar-se”.</p><p>Matías M. Molina é autor dos livros “Os melhores jornais do mundo” (Editora Globo) e “História dos jornais do Brasil” (Companhia das Letras).</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgt9hKwQLo5mi7SQqNgBQp2hGsWNSZzG-MQbKBVBhJvlRMHU5mq2fC5LzqDE1dWz2MMJThJLMK4auNJ1E9-sHUZGBUpO-mcN73xLRF8HWALFznnT8NrkyrtEz-gUkwKZ_2SL4G_/s984/foto16cul-201-molina-d24.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="886" data-original-width="984" height="576" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgt9hKwQLo5mi7SQqNgBQp2hGsWNSZzG-MQbKBVBhJvlRMHU5mq2fC5LzqDE1dWz2MMJThJLMK4auNJ1E9-sHUZGBUpO-mcN73xLRF8HWALFznnT8NrkyrtEz-gUkwKZ_2SL4G_/w640-h576/foto16cul-201-molina-d24.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-60163957156234388592021-07-18T18:27:00.000-03:002021-07-18T18:27:02.797-03:00Ao tocar a mesma distopia de ‘O Dilema das Redes’, Eugênio Bucci disseca a mais ousada empreitada do capitalismo<p>Elusivo por natureza e astuto por precisão, o capitalismo agigantado das big techs tem seus meandros e subterfúgios dissecados pelo bisturi afiado de Eugênio Bucci. “A superindústria do imaginário” desvenda como o regime econômico dominante, em seu mais elevado nível de sofisticação, deixou de fabricar apenas objetos físicos para produzir discursos - “uma marca, uma grife, um apelo sensual que faz de uma mercadoria ordinária um amuleto encantado”, anota o autor. “O capital se descobriu linguagem e se deu bem na sua nova encarnação.” O core business desse capitalismo é a narrativa. Tudo é resumido à prática de captar e monetizar a atenção do consumidor. “Os conglomerados da era digital elevaram o velho negócio do database marketing à enésima potência”, avalia Bucci. Fora a narrativa essencial, o restante é acessório, pode ser terceirizado sem prejuízo da imagem ou do valor do produto, escreve Oscar Pilagallo em ótima resenha para o Valor, publicada dia 16/7. Continua a seguir.</p><p> </p><p>O livro lembra que as mercadorias perderam valor de uso. Seu preço não está mais associado à utilidade que possa ter para o consumidor. O valor de troca agora é definido pelo “valor de gozo”, termo emprestado da psicanálise lacaniana.</p><p>Bucci vai mais longe: “A invocação da utilidade objetiva ainda tem um papel, só um: esconder a função de gozo”. Assim, o papel de uma bolsa de grife, como produto para guardar pertences, seria apenas mascarar o fim último do item que, pela fantasia nele projetada, cola na usuária o signo de exclusividade impregnado na marca. Não se compra a coisa em si, mas o sentido da coisa.</p><p>O autor argumenta que não se trata só de publicidade. É bem mais. Trata-se da “exploração do olhar”. Explora-se hoje o olhar da mesma maneira que antes, sob a ótica marxista, se explorava o trabalho. A imagem da mercadoria, diz, está “carregada de valor extraído do olhar social”.</p><p>O mecanismo descrito é sutil: com a ajuda da tecnologia, o capital se apropria da massa de informação que os usuários das redes fornecem de graça. De posse dos dados consolidados, essas empresas identificam o desejo dos consumidores, canalizando-o de modo a maximizar o lucro.</p><p>É assim que o capitalismo engendra sua mais ousada empreitada - a superindústria do imaginário. Nesse ambiente dominado por algoritmos, o valor de gozo não apenas aumenta o valor agregado de uma mercadoria - é a própria mercadoria, por mais imaterial que seja.</p><p>A distopia vislumbrada nesse “extrativismo virtual”, que viola todas as fronteiras da privacidade, remete a “O Dilema das Redes”, da Netflix, mencionado por Bucci. Mas enquanto o documentário apela a um hiperdidatismo que chega a infantilizar a abordagem, o livro, sem fazer concessões, mobiliza saberes das mais diversas áreas para construir um caso sólido. Além da psicanálise e do marxismo, o texto passeia com autoridade pelos estudos de comunicação e jornalismo, pela literatura, música, religião, ideologias, cinema, num amálgama pop que joga luz sobre o objeto do estudo.</p><p>Voz distintiva no campo progressista, Bucci critica a “velha escola panfletária de esquerda” que hipertrofia o poder da “ideologia burguesa” ao acreditar, arrogante e ingenuamente, que a finalidade dos meios de comunicação é traficar mentiras, como se não precisassem se legitimar perante seu público.</p><p>O puxão de orelhas é dado a propósito da percepção que essa esquerda tem da indústria cultural, que integra a superindústria do imaginário, sem com ela se confundir. Citando os filósofos da Escola de Frankfurt, o autor sustenta que essa manipulação ocorre não por deliberação dos protagonistas, mas na estrutura.</p><p>“Não será com a ideologice - que faz de conta que a História é uma fábula infantil em que a princesinha proletária é acossada pela bruxa capitalista - que as democracias acumularão pensamento crítico para compreender e enquadrar a selvageria do capital.”</p><p>A obra, originada numa tese de doutorado de 2002, resulta de uma pesquisa de 20 anos. Versões de alguns capítulos apareceram em publicações em que Bucci escreve. Outros textos são inéditos. A unidade não é ameaçada pela ligeira mudança de tom, que varia entre o polêmico contundente (com todo o respeito) e o acadêmico rigoroso (sem nenhuma cerimônia).</p><p>“A superindústria do imaginário” busca mais a reflexão do que a concordância do leitor. Não há consenso possível, por exemplo, quando o autor afirma, à guisa de conclusão, que “do ponto de vista ético, o que se passa hoje é pior do que aquilo que se passou na Revolução Industrial”. Ainda assim, o eventual exagero retórico faz pensar. Afinal, “o que é o capital que se apropria dos processos mais íntimos da formação da subjetividade” de uma criança?</p><p>Ensaísta tarimbado, autor de diversos livros, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, presidente da Radiobrás no primeiro governo Lula, Bucci tem habilidade, trajetória e bagagem mais do que suficientes para explicar o êxito do livro ao enfrentar a “pedreira conceitual” inerente ao tema. A leitura demanda empenho intelectual, como ele mesmo adverte, mas recompensará quem se deixar envolver por sua prosa fina e sedutora.</p><p>Oscar Pilagallo é jornalista e autor de “História da Imprensa Paulista” e “A Aventura do Dinheiro”.</p><p>A superindústria do imaginário Eugênio Bucci Editora Autêntica 448 págs., R$ 74,90 AAA</p><p>AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhWF2E7V4I6pZMm0baYlfLAX1Bkhe3xBi8pXHddN79R8z9X8QeE2MyINm8wMogFy7tfyTd4P5_QUlyl9NRyez-Ktxe7uW3pTeF8pSAl8AFyy7AHu_Aq9tXl9VfezibsavWfElnk/s984/foto16cul-101-livro1-d26.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="909" data-original-width="984" height="592" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhWF2E7V4I6pZMm0baYlfLAX1Bkhe3xBi8pXHddN79R8z9X8QeE2MyINm8wMogFy7tfyTd4P5_QUlyl9NRyez-Ktxe7uW3pTeF8pSAl8AFyy7AHu_Aq9tXl9VfezibsavWfElnk/w640-h592/foto16cul-101-livro1-d26.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-78584183406934475802021-07-18T18:02:00.004-03:002021-07-18T18:02:54.315-03:00 Da facada ao soluço<p>Era o 12o dia em que o presidente Jair Bolsonaro aparecia com um soluço interminável, que atrapalhava seus discursos, sua tradicional live e criava constrangimentos na fala matinal ou noturna no já famoso cercadinho. Tanto apoiadores como opositores do presidente perceberam que havia algo errado com sua saúde. Nas redes, o relato era de que Bolsonaro sentia um incômodo grande, com muitas dores. “Gritava de dor.” A primeira-dama Michelle Bolsonaro pediu que o marido fosse finalmente ao hospital. Era o começo da manhã do dia 14 de julho, e Bolsonaro perderia uma importante reunião com Rodrigo Pacheco, Luiz Fux e Arthur Lira. O ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, vinha tentando apaziguar a tensão entre o presidente e o ministro do STF Luís Roberto Barroso, a quem Bolsonaro atribui a culpa de não ser implantado o voto impresso para as próximas eleições – ou voto auditável, como apregoa a nova “narrativa” do governo com acusações pessoais e sem provas contra Barroso (Pleno News: Bolsonaro: Barroso defende “bandeiras” que “beiram a pedofilia”, 15.622 interações no Facebook). A reunião não aconteceu, e Bolsonaro foi para São Paulo. Começou, então, um roteiro que já se repetiu diversas vezes em que o presidente esteve internado para quaisquer uma de suas intervenções cirúrgicas pós-facada, escrevem Pedro Bruzzi e Leonardo Barchini no site da revista Piauí, em texto publicado dia 16/7. Continua abaixo.</p><p><br /></p><p>Normalmente, as primeiras notícias mais elucidativas sobre o quadro de saúde de Bolsonaro são dadas pelos filhos. As redes sociais são utilizadas coordenadamente. Todo o aparato de comunicação governista vira monotemático. Mas o “estouro” da boiada mesmo foi dado por Bolsonaro. Sua publicação com a foto em um hospital bateu os recordes do dia em língua portuguesa nas três redes – Twitter (189,5 mil interações), Instagram (2,15 milhões de interações) e Facebook (1,05 mil interações). Doravante, bolsonaristas ao menos tinham algum conteúdo que não o de defesa das acusações de corrupção e desídia na compra das vacinas. </p><p>Portais alinhados ao bolsonarismo publicaram matérias em profusão pedindo orações aos fiéis seguidores e conclamando as redes para que todos #OremPeloPresidente, principal hashtag subida pelos apoiadores do governo, que obteve 113 mil menções no Twitter (entre 14 e 15 de julho), com 45,9 mil usuários individuais tuitando. O pico foi em 14 de julho, com mais de 93 mil publicações. Ontem (15) arrefeceu, registrando pouco mais de 19 mil postagens.</p><p>Seguiu-se nas redes do clã Bolsonaro a estratégia de exposição pública da internação de Bolsonaro, sempre com fotos. A vitimização como estética gera engajamento nas redes. </p><p>Ainda assim, todo esse esforço e articulação nas redes parecem ter tido efeito limitado. O número de menções a Bolsonaro não explodiu. É difícil competir com temas “mundanos”. Era a volta da Copa Libertadores, rodada de oitavas de final. Times populares, como Flamengo, com estreia do novo técnico – simpático a Bolsonaro – e Palmeiras entrariam em campo. Essas variáveis costumam influenciar bastante a performance das redes.</p><p>Ao fim e ao cabo, Bolsonaro conseguiu um pico de 892 mil menções nas redes – de fato chamou alguma atenção. Mas a título de comparação, o presidente foi mais falado no dia 26 de junho deste ano, após a participação dos irmãos Miranda na CPI da Pandemia, quando acusaram o governo de corrupção (1,17 milhão de menções). Não chegou perto também do dia 29 de maio, quando eclodiram as maiores manifestações contra Bolsonaro após o início da pandemia. Nesse dia, a atenção das redes ao presidente foi praticamente o dobro, com mensagens de cunho predominantemente negativo (1,76 milhões de menções).</p><p>Olhando especialmente para o debate público no Twitter, não houve trégua a Bolsonaro. Chamaram atenção também as piadas e memes em tom negativo contra o presidente, que circularam em profusão nas redes. O grafo abaixo apresenta o debate no Twitter no dia 14. O agrupamento azul (28,7%) corresponde aos perfis bolsonaristas, que se solidarizaram e amplificaram a narrativa vitimista do presidente. Já os outros dois, vermelho (51,7%) e rosa (19,6%), são de oposição, com a diferença que o primeiro traz perfis do debate político do dia a dia, enquanto o segundo é composto por atores de fora desse tema.</p><p>Exemplo de publicações</p><p>@Rconstantino</p><p>“A probabilidade é de Bolsonaro ter tido dores decorrentes das cirurgias por conta da facada do simpatizante do Psol. Mas eu faria um exame toxicológico se fosse o presidente, para descartar envenenamento. De defensores de Cuba tudo é possível. Bolsonaro deve redobrar os cuidados.”</p><p>@reinaldoazevedo</p><p>“Bolsonaro quer usar a facada que elegeu para reeleger. Exposição grotesca do corpo do presidente prova q essa gente não tem limites. Afirmei aqui e em toda parte q eles tentariam apelar a algum fator extrapolítico para tentar reverter a derrocada. MÁRTIRES SÃO OS 537 MIL MORTOS “</p><p>No dia 15 (quinta), a situação não mudou muito. Os mesmos personagens e os mesmos argumentos circularam novamente, mas em número muito menor. A saúde de Bolsonaro não foi a pauta do dia: mesmo com toda a mobilização coordenada da base bolsonarista, a hashtag #QuemMandouMatarBolsonaro alcançou apenas 41 mil menções até o início da noite. Foi até suplantada por outra: #FundaoDe6biNAO, que obteve até o mesmo horário 48 mil menções.</p><p>No grafo de menções a Bolsonaro no dia 15, o agrupamento bolsonarista (azul) correspondeu a 29,5%, enquanto a oposição se apresentou ainda dividida em dois grupos, o vermelho (43,9%) e rosa (26,6%), no mesmo formato do dia anterior.</p><p>Exemplo de publicações</p><p>@gen_heleno</p><p>“No dia de hoje, visitei o presidente Bolsonaro, no Hospital Vila Nova Star, em SP. Ele passa bem, mas continuará a fazer alguns exames e avaliações. Sua recuperação tem sido acima do esperado, graças a Deus e às orações dos amigos e amigas.”</p><p>@GuilhermeBoulos</p><p>“Bolsonaro está internado e tuitando. Mourão na África do Sul. O Brasil é governado por Carluxo!”</p><p>Nos moldes da maior parte da campanha de 2018, sua internação permite que ele fale menos e, consequentemente, sofra menos desgaste. É provável que Bolsonaro tenha mais alguns dias para esperar a poeira baixar durante sua internação, ainda que a oposição – agregada de um público jovem e alheio à política – não o poupe de críticas nas redes. </p><p>A discussão sobre o fundo eleitoral também pode ser mais uma boia para que o presidente saia das cordas e pare de ter que se explicar sobre as turvas compras (ou a falta) de vacinas. Essa pauta do Fundão, por exemplo, permitiria que ele se recolocasse como o maior símbolo antissistema, ou ao menos fingisse ser. É um assunto que agrada ao senso comum e constrange o sistema político nas redes. Os votos contraditórios da LDO de deputados de sua base, contudo, já mostram a dificuldade que terá para enfrentar o Centrão e defender o fim do Fundão. O buzz nas redes sobre a nova internação de Bolsonaro parece ter sido tão efêmero no debate público que cá estamos já querendo medir a pauta seguinte. Próximo!</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh6_j-G4aX7NqAuFKhzOzUrpPYrc4HiMVrFxVQQX_PS7PbaD5sTBiwxzlqMILyR2qF8SOsj86KIVZMRfQCbwC7ny37L0rBTn-0BMd7ZrguAxc4ZjQfDXUxEYb45cqKXpy4MYqVG/s1200/bolsonaro-interna.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="800" data-original-width="1200" height="426" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh6_j-G4aX7NqAuFKhzOzUrpPYrc4HiMVrFxVQQX_PS7PbaD5sTBiwxzlqMILyR2qF8SOsj86KIVZMRfQCbwC7ny37L0rBTn-0BMd7ZrguAxc4ZjQfDXUxEYb45cqKXpy4MYqVG/w640-h426/bolsonaro-interna.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-74111106573534216132021-07-18T17:47:00.005-03:002021-07-18T17:47:23.094-03:00 Diferenças entre extremos do espectro eleitoral não diminuem importância da terceira via<p>Em minha última coluna, servi-me do recente exemplo peruano para apontar os riscos de radicalização que uma fragmentação do centro pode conter. Alguns leitores, sem discordar necessariamente da tese, observaram que, no Brasil de hoje, não se podem considerar equivalentes as eventuais ameaças à democracia apresentadas pelas duas candidaturas que lideram as pesquisas. Concordo com eles. Acredito que o aparelhamento da máquina pública, a tentativa de aliciamento do Legislativo através do mensalão e o projeto de controle da mídia, iniciativas dos governos petistas que dificilmente se enquadrariam como “republicanas”, empalidecem diante da sucessão de investidas contra a institucionalidade a que assistimos no atual governo, escreve Candido Bracher em sua coluna na Folha de S. Paulo. Continua abaixo.</p><p><br /></p><p>O seu inequívoco caráter autoritário lhes confere uma natureza, e não apenas um grau, diversa e muito mais grave do que aquela vivida durante a gestão da esquerda. Os ataques presentes são tão frequentes, intensos e variados que ameaçam anestesiar nossa sensibilidade e embotar nossa capacidade de indignação.</p><p>Parêntese: um excelente professor de literatura no colegial, Flávio Di Giorgi, nos dizia que a capacidade de se indignar é um dos atributos mais distintivos do caráter humano, antes de proceder à leitura em voz alta de “Fala aos Pusilânimes” do “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles.</p><p>Seria ingênuo e temerário ignorar a existência de método e propósito, por trás da aparente espontaneidade primitiva dos ataques presentes.</p><p>Enquanto as águas são testadas por diatribes insensatas proferidas diante de pequenos grupos de correligionários fanáticos, urdem-se no Legislativo tramas com consequências mais graves e duradouras.</p><p>As manifestações públicas têm sido adequadamente contestadas pelos Poderes independentes, que dispõem dos meios legais para contê-las, inclusive a possibilidade crescente do impeachment.</p><p>Devemos estar atentos para que este embate mais evidente não sirva como estratégia diversionista para viabilizar a consagração de dispositivos autoritários em nossas leis.</p><p>Tomo como exemplo apenas uma das iniciativas, que se encontra em plena evolução nestes dias: a tentativa sub-reptícia de cooptação das forças policiais através da concessão de benefícios especiais a seus membros, como a criação de linhas de crédito imobiliário privilegiadas.</p><p>Parece algo pequeno, mas é um recurso que se enquadra claramente no receituário de submissão do aparato repressivo do Estado a um grupo específico. Não é algo inovador. Trata-se de uma estratégia adotada com frequência na construção do totalitarismo.</p><p>Há uma excelente série de televisão, “Babylon Berlin” (1) que dá uma boa ideia desse processo durante a República de Weimar no final dos anos 1920, quando se criavam as condições políticas e sociais que permitiriam a ascensão dos nazistas ao poder.</p><p>Além de um retrato cuidadoso do ambiente político, a série traz uma admirável reconstrução de época, com atenção ao vestuário, arquitetura, música e zeitgeist daqueles anos tumultuados.</p><p>O fato de que os extremos do nosso espectro eleitoral (que, como inferido acima, não correspondem aos extremos do espectro ideológico) não possam e não devam ser vistos como igualmente ameaçadores à ordem democrática não diminui a importância da busca por uma “terceira via”.</p><p>Trata-se de oferecer uma alternativa viável à significativa parcela dos eleitores que não se identificam nem à direita nem à esquerda. Esta iniciativa, contudo, encontrará forte resistência por parte das candidaturas hoje majoritárias. A charge de André Dahmer, ao lado, publicada na Folha, ilustra este comportamento.</p><p> Recorte da tira do cartunista André Dahmer para a Ilustrada de 24.jun.2021 - André Dahmer</p><p>Apesar de todas as diferenças, há algo que inegavelmente une os polos: o desejo de se enfrentarem no segundo turno. Ambos os lados avaliam que sua maior chance de êxito eleitoral reside na disputa com seu extremo oposto.</p><p>Assim, em um aparente paradoxo, tanto a esquerda quanto a direita procurarão atacar qualquer candidato de centro que comece a ascender nas pesquisas, ainda que ao custo de temporariamente fortalecer aquele que veem como adversário último.</p><p>Reforça-se assim a necessidade de entendimento entre os candidatos e partidos mais próximos ao centro.</p><p>Por resultar de um compromisso entre diversas tendências, a plataforma eleitoral unificada deverá concentrar-se em poucos pontos fundamentais. Para facilitar a adesão, é imprescindível que o candidato declare que, se vitorioso, não concorrerá à reeleição.</p><p>A política econômica deve ser voltada para o crescimento e redução de desemprego, combinada com a manutenção de baixas taxas de inflação (com as suas implicações em termos de política monetária e fiscal), aliada a um programa consistente de transferência de renda.</p><p>Como metas estratégicas, o meio ambiente e a educação seriam promovidos ao nível de “Questão de Estado”, visando o estabelecimento de procedimentos e metas plurianuais claras —como o Pisa, no caso da educação, e os índices de desmatamento e emissão de carbono para o meio ambiente— a exemplo do que, desde o Plano Real, o país foi capaz de fazer em relação ao controle da inflação.</p><p>Cabe a nós, eleitores “de centro”, exigirmos dos nossos representantes o empenho na promoção de um entendimento, que ofereça ao país uma alternativa real às tendências que hoje lideram as pesquisas.</p><p>(1) Globoplay. Curiosidade: há, na terceira temporada, uma cena no tradicional “Romanisches Café”, ponto de encontro de escritores e jornalistas em Berlim nos anos 1920, em que o personagem folheia demoradamente um exemplar da “Folha da Manhã”.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh_FDZRSqIrssewFqaH1dCbK7G4GUnmpOxC6Y805g-zw51XLwv3hsws1on0JrKPppWDW05s-Y0y3gNthYhIgZyMPF6ksHn9usx6rgHkUE-CQNZQIjabWrwhdzMkaS4DwyXvGEw4/s1200/162661511460f42d4aebfe9_1626615114_3x2_xl.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="800" data-original-width="1200" height="426" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh_FDZRSqIrssewFqaH1dCbK7G4GUnmpOxC6Y805g-zw51XLwv3hsws1on0JrKPppWDW05s-Y0y3gNthYhIgZyMPF6ksHn9usx6rgHkUE-CQNZQIjabWrwhdzMkaS4DwyXvGEw4/w640-h426/162661511460f42d4aebfe9_1626615114_3x2_xl.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-84381197721432782292021-06-13T21:04:00.003-03:002021-06-13T21:04:57.206-03:00 Presidente argentino, Alberto Fernández, irrita toda a América Latina com uma única frase<p>O papa Francisco, natural de Buenos Aires, gosta de fazer piadas sobre a fama que os argentinos costumam ter de serem presunçosos. Em 2015 ele disse ao então presidente do Equador, Rafael Correa, que seus compatriotas ficaram surpresos por ele não ter escolhido Jesus II como seu nome pontifício. Ele falou a um jornalista mexicano sobre a forma de suicídio preferida pelos argentinos: “Sobem ao topo de seu ego e se lançam dali”. É uma forma de rir de si mesmo. Já no caso do presidente Alberto Fernández, é outra coisa: ele parece empenhado em se tornar o protagonista de uma piada sobre argentinos. Com um efeito irritante para o restante da América Latina. Fernández conseguiu obscurecer a breve visita a Buenos Aires do presidente do Governo (primeiro-ministro) espanhol, Pedro Sánchez, a primeira de um líder europeu desde o início da pandemia, com uma frase tirada de uma canção de Litto Nebbia que ele erroneamente atribuiu a Octavio Paz: “Os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros saíram da selva, mas nós, os argentinos, chegamos de barco. Eram barcos que vinham da Europa “. A frase original do mexicano Octavio Paz, que Jorge Luis Borges repetia com frequência, era bem mais irônica: “Os mexicanos descendem dos astecas; os peruanos, dos incas, e os argentinos, dos barcos”, escreve Enric González, de Buenos Aires, para o El País. Continua a seguir.</p><p><br /></p><p>São compreensíveis as queixas, bem como as piadas, que proliferam por toda a América Latina com base na frase do presidente argentino, que imediatamente pediu desculpas a quem tiver se sentido ofendido. Na Argentina não se fala de outra coisa. Pode-se supor que a pequena frase assombrará a diplomacia do país por muitos anos. Também não é a primeira vez que Alberto Fernández se comporta como um argentino de piada. Em 14 de dezembro, diante de um grupo de cientistas locais, ele proferiu outra frase inesquecível: “Somos, em certa medida, a inveja do mundo”.</p><p>A ironia subjacente é que sob o comando de Alberto Fernández a Argentina tem pouco de invejável. Já é um dos países com mais mortes por covid-19 —com 83.000— e está com os hospitais à beira da saturação, mas continua se recusando a receber vacinas norte-americanas (Moderna, Janssen e, sobretudo, Pfizer), o que o impedirá de ter acesso à parte que lhe caberia das 500 milhões de doses que o Governo de Washington vai doar. Nem poderá receber sua parte total dos 20 milhões de doses que a Espanha doará no próximo ano, a menos que sejam todas da AstraZeneca. Os parlamentares governistas decidiram manter na lei de imunização o parágrafo que permite levar as empresas farmacêuticas à Justiça em caso de “negligência”, um impedimento à aquisição de doses dos Estados Unidos, porque essas vacinas, segundo a deputada peronista Cecilia Moreau, “não são necessárias”.</p><p>A gestão da economia, com a inflação em disparada (os preços subiram 17,6% desde janeiro) e as negociações com o FMI em ponto morto pelo menos até as eleições gerais de outubro, é altamente discutível. De acordo com a organização católica Caritas, o país vive uma “crise sanitária, social e econômica sem precedentes”, com 75% dos menores de idade da região metropolitana de Buenos Aires mergulhados na pobreza. A Caritas afirma que de cada quatro crianças na Grande Buenos Aires, apenas uma come todos os dias.</p><p>Nesse contexto, o Governo de Fernández se viu obrigado a retificar a lei sobre monotributos (imposto simplificado) que, por ter efeito retroativo, deixou como devedores aqueles que haviam pago na época certa. Meses de debates no Congresso deram em nada e é preciso recomeçar. O descontentamento com a mancada no monotributo coincide com o aumento de 40% no salário dos parlamentares e funcionários que as duas casas do Congresso concederam a si mesmos, após um ano trabalhando em ritmo reduzido por causa da pandemia.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiqGA7WTRd6p1Nbi9dUl5QfDWyx6O43Z8AT54-K2jvCpSmvMEHgxCessy7nc0fnbAtUoE1PXIAtGoXjzAK0KK1M4htJLYiMGn43bXKb801zs9ykhidTfoYCmF5p5UAH3e4q42Ea/s1960/NH5AHSYMGNFU2EKADLENZ4OHOQ.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1307" data-original-width="1960" height="426" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiqGA7WTRd6p1Nbi9dUl5QfDWyx6O43Z8AT54-K2jvCpSmvMEHgxCessy7nc0fnbAtUoE1PXIAtGoXjzAK0KK1M4htJLYiMGn43bXKb801zs9ykhidTfoYCmF5p5UAH3e4q42Ea/w640-h426/NH5AHSYMGNFU2EKADLENZ4OHOQ.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-83809020488151179012021-06-13T20:35:00.002-03:002021-06-13T20:35:29.323-03:00 De olho na eleição, Freixo troca de partido: “Civilização contra barbárie”<p>A trajetória política do deputado federal Marcelo Freixo, 54 anos, se funde com a do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), no qual ingressou, vindo do PT, um ano após sua criação, em 2005. Agora os dois vão se separar: nesta entrevista, Freixo afirmou a VEJA, em primeira mão, que decidiu ingressar no Partido Socialista Brasileiro (PSB). E mais: é por essa legenda que se declara pré-candidato ao governo fluminense nas eleições de 2022. “No PSB terei a chance de fazer uma aliança mais ampla, com partidos progressistas e de centro, para enfrentar o grupo político que faliu o Rio e entranhou a corrupção no estado”, justifica. Na tentativa de se descolar da imagem de radical que acompanha o PSOL, Freixo não descarta ter até o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, a seu lado no palanque. Segundo ele, a esquerda não pode repetir os erros da eleição passada. “Não é mais uma questão de direita versus esquerda, mas de proteger a democracia”, diz. Íntegra da entrevista a Sofia Cerqueira e Cássio Bruno, repórteres da Veja, a seguir:</p><p><br /></p><p>O senhor está mesmo deixando o PSOL? Saio nesta sexta (dia 11) e me filio ao PSB ainda neste mês. A mudança faz parte de um projeto nacional que também inclui a filiação ao mesmo partido do governador do Maranhão, Flávio Dino (do PCdoB). No meu caso, estou olhando para dois cenários, o do Rio e o nacional.</p><p>O que motivou sua saída? Tenho uma gratidão enorme pelo partido que mais tempo me abrigou na política. A decisão de sair, que foi debatida durante meses, permitirá a construção de uma aliança ampla. A questão é que agora enfrentamos uma situação sem precedentes com relação à violência e à economia. A disputa no Rio, especialmente, não é da direita contra a esquerda, mas da civilização contra a barbárie. O PSOL estará conosco, mas, sem dúvida, teria mais dificuldades de fazer uma frente tão abrangente quanto a que se faz necessária.</p><p>O PSDB está incluído nessa frente? O apoio de Fernando Henrique Cardoso é bem-vindo? Claro, é fundamental. FHC e Lula, inclusive, estão juntos agora, unindo forças para garantir a Constituição de 1988, que se encontra sob ameaça. A eleição de 2022 será um plebiscito sobre se ela continuará valendo ou não.</p><p>Quais foram os erros da esquerda na última eleição presidencial? Não há dúvida de que faltou união. Jair Bolsonaro não venceu só por seus méritos, mas também pelos erros dos adversários, incluindo aí os partidos de centro e da direita não bolsonarista. Outra coisa que faltou foi a percepção de que existia uma engenharia política naquele discurso violento. Menosprezar esse fato foi um erro contundente.</p><p>Que esquerda é viável em 2022? As pessoas com quem converso ressaltam que uma aliança não deve se limitar à esquerda. O PSB ainda está debatendo a questão do apoio, mas em uma eleição polarizada entre Lula e Jair Bolsonaro o partido estará com o petista.</p><p>Recentemente o senhor se encontrou com Lula. Ele influenciou sua saída do PSOL? Não. Agora, a volta do Lula ao tabuleiro eleitoral mexeu com o cenário, inclusive nos estados. No Rio, o PT de imediato abriu mão de lançar um candidato e indicou apoio a uma grande aliança. O PSB, o PCdoB e o PSOL idem. Com o PDT estamos conversando, mas ainda depende do que acontecerá com a candidatura do Ciro Gomes à Presidência.</p><p>“Tenho boa relação com o Ciro, mas as pesquisas mostram que não há espaço para duas candidaturas do mesmo campo. Espero que, até a eleição, isso mude”</p><p>Se não apoiar Lula, Ciro Gomes estará cometendo um erro? O Ciro é uma pessoa muito bem preparada e com quem tenho boa relação. Mas as pesquisas mostram que não há espaço, neste momento, para duas candidaturas do mesmo campo. Espero que até a véspera da eleição amadureça a necessidade de união e isso mude.</p><p>O senhor está à frente nas pesquisas para o governo do Rio. A candidatura é coisa certa? Sim, sou pré-¬candidato. Ainda falta mais de um ano, mas estou à disposição para construir essa alternativa para o Rio. Há três meses, em um jantar em Brasília, o deputado Rodrigo Maia (Democratas), espontaneamente, disse que eu deveria ser governador. Não significa que vá me apoiar, mas é notório que algo novo precisa acontecer.</p><p>O PSOL tem fama de partido radical. A busca por uma legenda mais palatável pesou na mudança? Não acho que a população do Rio me veja como radical. Em 2012, tive 28% dos votos para prefeito. Em 2016, atingi 41% no segundo turno, mesmo sem tempo na TV. Sempre defendi alianças, mas agora elas são mais necessárias, indispensáveis mesmo. A realidade das milícias, do tráfico, do desemprego e da corrupção estrutural se agravou em toda parte. O grupo dos ex-governadores Wilson Witzel, Sérgio Cabral e Anthony Garotinho e do ex-deputado federal Eduardo Cunha estará no mesmo palanque. Só unidos seremos capazes de derrotar o bloco político que acabou com o estado. O Rio faliu economicamente, politicamente e eticamente.</p><p>O PSB tem condições de cumprir esse papel? Não tenho dúvida de que conseguiremos unir os setores que divergem do atual governo. É uma legenda que facilita o diálogo com todos, do campo progressista ao centro.</p><p>Isso quer dizer que, com radicalismo, a esquerda não vai para a frente? Ninguém é mais radical que Bolsonaro. Se tem um radical que faz mal ao Brasil hoje, é ele.</p><p>Como pretende viabilizar sua candidatura? Além de alianças, estamos reunindo pessoas capacitadas. Os economistas André Lara Resende e Laura Carvalho estão traçando um plano de recuperação do estado. O Raul Jungmann, ex-¬ministro da Defesa, coordenará o programa de segurança e Carlos Gadelha, da Fiocruz, atuará na saúde. Um estudo da Universidade Federal Fluminense mostrou que 58% do território fluminense é dominado por milícias. O estado necessita de uma gestão que gere desenvolvimento, não corrupção.</p><p>O senhor chegou a cogitar voltar ao PT? Não. O próprio PT avaliou que o PSB era o melhor lugar em que eu poderia estar no projeto de formação de uma grande aliança. Para a liderança petista do Rio, o mais importante é eleger Lula presidente. Em 2018, o estado pesou na derrota de Fernando Haddad e a legenda sabe que não pode repetir o erro.</p><p>O que responde a quem o chama de “esquerda caviar” porque mora na Zona Sul, frequenta hotéis caros e gosta de viajar? Críticas são bem-vindas, mas essa é injusta. Não pisei mais do que três vezes no Copacabana Palace, duas para reuniões e uma para jantar com minha mulher, que pagou a conta. Moro no apartamento dela e nunca viajei de primeira classe. Fui criado na periferia de Niterói e nem sequer tinha telefone em casa. Perdi amigos para o crime e as drogas.</p><p>Se for derrotado na disputa para governador, ficará sem mandato e sem direito a segurança. Tem medo de morrer? Claro que tenho. Nunca fui imprudente. Encabeçar a CPI das Milícias não foi irresponsabilidade, mas necessidade. Como resultado, as ameaças aumentaram. Sei que não posso ficar desprotegido e venho discutindo um plano B com a família. Não iria embora, mas posso passar um período fora do país. Só não vou deixar de ser candidato por isso.</p><p>Desde a CPI, em 2008, a milícia cresceu, aliou-se ao tráfico e ganhou influência na política. Dá para reverter o quadro? Esse é o problema número 1 do Rio. Os milicianos têm um projeto de poder. Não apenas atuam na grilagem de terras, na extorsão, no controle dos serviços públicos como elegem gente deles. Para mudar esse estado de coisas, é preciso um pacto de enfrentamento entre governos municipal, estadual e federal, inteligência da polícia e apoio da sociedade e do empresariado.</p><p>Como isso seria feito na prática? É fundamental quebrar a economia das milícias. Nesse ponto, a valorização da polícia, com um plano de cargos e salários e investimento em formação, é primordial. Um mapeamento eficiente dará ao governo as ferramentas para assumir os serviços hoje controlados pelo crime e criar alternativas. Não estou falando de ocupação de território, mas de quebrar a geração de renda.</p><p>Muitos acreditam que o senhor era o real alvo do ataque que matou a vereadora Marielle Franco, do PSOL. Sente-se culpado? A hipótese é válida, já que ela era muito ligada a mim, embora alguns fatos não se encaixem. Mas de forma alguma me sinto culpado. Quem tem culpa é quem cometeu essa covardia. O que sinto é dor, saudade. Era uma grande amiga com quem vivi alguns dos melhores momentos da minha vida. Acompanho as investigações todos os dias.</p><p>Por que, passados três anos, a polícia não chegou aos mandantes do crime? Alguns procedimentos elementares não foram adotados pela polícia no início da investigação, como checar câmeras de rua e interrogar pessoas-chave. Isso comprometeu o andamento do inquérito, mas ele não está parado. A morte da Marielle destampou um bueiro da segurança pública e expôs a mistura de criminalidade com polícia e política. Não pode uma vereadora ser assassinada e ficar por isso mesmo.</p><p>“Os milicianos não apenas atuam na grilagem, extorsão e controle de serviços públicos como elegem gente deles. Reverter o quadro requer um pacto entre governos, polícia, sociedade e empresariado”</p><p>Afinal, quem matou Marielle? É a polícia que tem de responder. Sabe-se que não havia ameaças contra ela, nenhuma razão passional, e que a morte teve motivação política. Também não há dúvida do envolvimento da milícia. Muito se avançou com a prisão de Ronnie Lessa, acusado da execução, e informações continuam chegando através de quebras de dados do Google e de intermediários. Ainda acredito na elucidação do crime.</p><p>O senhor afirma que o clã Bolsonaro tem ligações com a milícia. Possui provas? Não sou eu que digo, são os fatos. Fabrício Queiroz, que atuava no gabinete de Flávio Bolsonaro, era ligado a milícias e tinha negócios em seu território. Até flagraram um cheque dele para a primeira-dama. O miliciano Adriano da Nóbrega foi homenageado por Flávio, na Alerj, a pedido de Jair. Quando deputado, o presidente, inclusive, defendeu a legalização desses grupos, o que, por si só, é muito grave.</p><p>Bolsonaro é criticado por promover aglomerações na pandemia, mas há pouco milhares de opositores fizeram o mesmo em um ato de protesto. Não é contraditório? Há um desespero das pessoas diante do que este governo representa. Uma grande parcela da população considera que, com esses protestos, o presidente perde o monopólio das ruas. Eu só não estava lá porque minha mãe tem 80 anos e ainda não fui vacinado.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgJdQieRHfrO8Ykz9a7zyW7TPbkDO69aXuMgcNd3BYUbRvU04N98bNW1993MR2IHjVae1vmina7-WOx5dJDAq7BvpDYcER2558eT5uaH4LeYvJnjmx2SM64-zcIpMvJlF5FUJcZ/s680/Marcelo-Freixo-05-1.jpg-1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="453" data-original-width="680" height="426" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgJdQieRHfrO8Ykz9a7zyW7TPbkDO69aXuMgcNd3BYUbRvU04N98bNW1993MR2IHjVae1vmina7-WOx5dJDAq7BvpDYcER2558eT5uaH4LeYvJnjmx2SM64-zcIpMvJlF5FUJcZ/w640-h426/Marcelo-Freixo-05-1.jpg-1.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-58386588988223940182021-06-13T20:31:00.003-03:002021-06-13T20:31:41.756-03:00 A hora de João Doria<p>Pergunte a qualquer brasileiro a que cargo o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), pretende concorrer em 2022, e a resposta será: “presidente”. Mas caso você faça essa pergunta diretamente a ele, como fez PODER em entrevista exclusiva no palácio dos Bandeirantes, numa sexta-feira de maio, a resposta é: “Por enquanto, nenhum. Continuarei sendo gestor aqui do governo do estado de São Paulo”. “Dois mil e vinte e dois é para ser pensado em 2022. Ano ímpar é ano de gestão”, justificou, para em seguida expor uma contradição ao defender a definição do concorrente do PSDB ao Planalto por meio de eleição interna em 2021. “Não há a menor hipótese de você ter um candidato competitivo com prévias em 2022, o vencedor não terá tempo suficiente de articulação com os demais partidos de centro.” Embora não afirme sua candidatura, João Doria já deu mostras de que tem pressa para se tornar o ungido de seu partido. A tentativa do governador de se tornar presidente da sigla, em fevereiro, e, uma vez dominada a máquina, expulsar o correligionário Aécio Neves, gerou reação. Presidentes de todos os diretórios estaduais, os sete senadores e 2/3 da bancada de deputados federais do PSDB barraram sua pretensão, reconduzindo ao comando tucano o ex-deputado federal Bruno Araújo. Ato contínuo, como que por geração espontânea, começaram a pipocar outros presidenciáveis na sigla, como o governador gaúcho Eduardo Leite e o senador cearense Tasso Jereissati. Como um comentarista de rede social, o ex-presidente e cardeal do PSDB Fernando Henrique Cardoso disse então que “o apressado come cru, melhor é comer cozido”, relata Paulo Vieira em reportagem para a revista Poder. Vale a leitura, continua abaixo.</p><p><br /></p><p>João Doria confia nas prévias, as eleições internas do PSDB, não apenas por seu desempenho pregresso – venceu as duas que disputou, assim como as eleições propriamente ditas, em 2016 e 2018 –, mas porque São Paulo conta com o maior número de filiados, o que lhe dá estamina e votos para contrapor- se à resistência a seu nome. Havia uma discussão em torno desse processo, com Doria a advogar um modelo com voto direto, sem restrições, e Leite preferindo a aplicação de pesos diferentes para proporcionar “equilíbrio federativo”. Em 31 de maio o partido aprovou um documento que, se referendado, define o sistema com pesos desiguais, diferentemente do que Doria queria. O episódio mostrou que o governador não tem força – por ora, ao menos – de chegar chegando e bagunçar o PSDB. Pelo Brasil, o partido tem visões plurais, digamos, sobre diversos temas, notadamente sua adesão – ou não – a Jair Bolsonaro, o antípoda do governador. Doria gostaria de ver 100% do PSDB na oposição a quem chama de “mito da mentira”, mas há parlamentares tucanos muito próximos do Planalto, caso dos senadores Roberto Rocha (MA) e Izalci Lucas (DF), que chegou mesmo a ser vice-líder do governo no Senado em 2019.</p><p>Há muito tempo o PSDB é caracterizado com ironia na imprensa e no circuito político como um partido em que seus integrantes são desprovidos do poder de decisão. Alguns poderiam chamar isso de “democracia”, mas a verdade é que a sigla tem poucos nomes com o peso – ou com os ativos eleitorais – de Doria, o que torna uma indecisão em relação a 22 pouco justificável. Ter-se tornado o político que conseguiu vacinar a primeira brasileira contra a Covid-19 e até meados de maio fornecer, por conta exclusiva de seus esforços, duas em cada três doses das vacinas aplicadas no país, é um supertrunfo, especialmente quando comparado ao que seus prováveis adversários tucanos têm a ofertar: uma reforma administrativa, no caso de Leite; e uma suposta capacidade de diálogo, no caso de Tasso, cujos acólitos buscam fazer pespegar ao parlamentar cearense o carimbo de “Joe Biden brasileiro”.</p><p>João Doria tem apenas quatro anos de vida pública e está invicto em eleições, o que não quer dizer nada. Surfou na antipolítica e levou já no primeiro turno para prefeito de São Paulo, em 2016; dois anos depois, sofrendo rejeição na capital paulista por abandonar precocemente a prefeitura, venceu a acirrada disputa para governador do estado. Vê-se como alguém de “cabeça privada”, setor onde esteve por quatro décadas, “na política”. “Continuo tendo esse sentimento privado na gestão pública, por isso montamos aqui um secretariado de nível de ministério. Há várias pessoas que vieram do setor privado e oito ex-bons ministros de Estado que ajudam a fazer um governo descentralizado, operativo, corajoso, o único entre os estados a fazer uma reforma administrativa que reduziu despesas, para que pudéssemos ter a condição fiscal adequada que hoje temos, de R$ 21 bilhões em 2021, mais do que o governo federal tem para investir.”</p><p>Mesmo com esse verdadeiro discurso proferido numa única resposta ao repórter de PODER, tudo isso parece ser verdade, à parte a reforma administrativa solitária, uma vez que também feita por Eduardo Leite, no Rio Grande do Sul. Apresentar a gestão “AAA” seria uma boa ideia em 2022, já que Doria não deve deixar uma vitrine de grandes obras – naipe expansão do metrô paulistano, conclusão do Rodoanel e até mesmo o “people mover” do aeroporto de Guarulhos – para ostentar. O problema é que tudo isso pode ser uma quimera, até mesmo a despoluição do rio Pinheiros, tema que passou batido por décadas de gestões tucanas em São Paulo e que Doria decidiu enfrentar. A discussão em 2022 tem tudo para estar, como se diz no futebol, em outro patamar, e contrapor-se a Bolsonaro pode ser a verdadeira língua franca, a única a fazer sentido na campanha.</p><p>E aí Doria terá um problema. Tendo muito para mostrar em sua administração ou não, o governador não vai conseguir se desvencilhar de uma imagem crucial de sua história política, que tende a roubar a cena na campanha eleitoral, na TV e na internet. É que para vencer a disputadíssima eleição para governador contra Márcio França (PSB), em 2018, Doria criou o neologismo “BolsoDoria”, e literalmente vestiu a camiseta amarela com essa inscrição, em manobra para aproveitar a popularidade do candidato a presidente pelo PSL. O “namoro” entre João e Jair, para usar uma expressão cara ao presidente, não duraria muito, mas teve cenas memoráveis. Em junho de 2019, Bolsonaro veio a São Paulo e Doria se deixou fotografar fazendo flexões abdominais em sua companhia (Bolsonaro ergueu os ombros). O governador ainda foi ao Twitter para se justificar: “Presidente mandou pagar 10, a gente paga neh?”. E marcou @jairbolsonaro. Daí em diante tudo mudaria, e faltaria hoje verossimilhança à obra do romancista que tentasse reproduzir os fatos políticos dos últimos três anos no Brasil da maneira estrita como eles se desenrolaram. Em novas viagens a São Paulo, Bolsonaro evitou Doria, passou a atacá-lo sistematicamente, atrasou a compra pelo Ministério da Saúde – o grande palco da batalha entre os dois – da vacina CoronaVac, que teve em junho uso emergencial reconhecido pela OMS, e começou a desdenhar do governador, chamando-o de “calça apertada”.</p><p>Em resposta, Doria passou a não perder uma oportunidade de criticar o presidente. Sem apelar a apelidos ginasianos, usa suas aparições públicas para chamar Bolsonaro de “incompetente”, “negacionista”, “displicente”, alguém a quem “falta compaixão”. “O governo Bolsonaro é um desastre completo em todas as áreas”, disse a PODER. “Um governo negacionista, que por falta de determinação e por excesso de ideologia, levou o Brasil ao fim da fila no combate à pandemia, e contribuiu, lamentavelmente, para que o Brasil até o momento tivesse mais de 428 mil mortes [o número no dia do fechamento desta edição chegou a 463 mil]</p><p>AVENIDA LARGA</p><p>As pesquisas eleitorais têm sido duras com o governador. No mais recente Datafolha, divulgado em meados de maio, seu nome aparece na estimulada com 3% da intenção de votos, atrás de Lula (41%), Bolsonaro (23%), Sergio Moro (7%), Ciro Gomes (6%) e até do ‘não sai de cima’ Luciano Huck (4%). Apesar disso, vê uma “avenida larga” para uma candidatura de centro como a sua, uma terceira via entre Lula e Bolsonaro, que ele ambiciona trafegar. “Uma faixa expressiva, 40%, ainda não tomou sua decisão, e administrará a possibilidade de votar num candidato de centro, que seja capaz de trazer esperança, de recuperação do Brasil. Não há caminho estreito, há uma avenida larga”, disse.</p><p>Especialistas em marketing político próximos do governador veem duas grandes dificuldades para ele transpor. Transcender as fronteiras de São Paulo e conseguir provar-se autêntico, justamente a “qualidade” observada em Bolsonaro. As lágrimas vertidas ao anunciar a eficácia da CoronaVac, a vacina “chinesa do Doria”, na definição de 2020 do “PR”, ou a emoção de protagonizar a imunização da primeira brasileira, uma enfermeira negra escolhida a dedo, em 17 de janeiro, podem não ser cenas suficientemente persuasivas diante da imagem da infame camiseta amarela. Contra isso, Doria tem tentado um antídoto – a admissão do erro. “Eu, como milhões de brasileiros, confiei também no discurso liberal de Paulo Guedes; acreditei que o convite feito a Sergio Moro [representasse] também um compromisso com a Lava Jato, com as medidas punitivas às más condutas, à irresponsabilidade e aos atos criminosos de gestão de dinheiro público. Mas errei, assim como milhões de outros brasileiros. Não vou errar pela segunda vez.” O governador sustenta, como se vê, que o convite a Moro se deu antes de 28 de outubro, dia do pleito de Bolsonaro contra Fernando Haddad. Doria também alegou a PODER que, por não ter sido parlamentar, e, com isso, “não ter convivido com Bolsonaro no Congresso”, não poderia conhecê-lo suficientemente. Por esse raciocínio, eleitor nenhum poderia conhecer Bolsonaro suficientemente. Mais defensável é o terceiro argumento, de “que não havia nenhuma possibilidade de apoiar o PT”, força em que Doria sempre bateu em sua curta carreira política.</p><p>Pelo que se depreende da conversa com o governador, apagar o BolsoDoria só talvez seja possível se ele conseguir afirmar claramente sua paternidade na vacina contra a Covid e, com ela, sua defesa intransigente pela vida de milhões de brasileiros. O tema, na opinião do governador, vai estar em voga em 2022 por conta das mutações do vírus Sars- -CoV-2 e da necessidade de novas rodadas de imunizações. E sim, tudo isso tende a eclipsar, paradoxalmente, a gestão “privada” na política, o bom ambiente de negócios, a capacidade de investimento e as soluções inovadoras que imprimiu à gestão. Para o consultor político e cientista social Ney Figueiredo, Doria foi “vítima de uma milícia digital bolsonarista que abalou sua imagem de político inovador”, e não o vê com chances numa eleição presidencial – exceto compondo uma chapa como vice. “Governador do maior estado do Brasil que apresentou resultados razoáveis na pandemia, que trouxe a CoronaVac, responsável maior pela vacinação, e que não tem acusações de corrupção”, elenca, entre dversos senões. Outra possibilidade admitida por Figueiredo e por um pequeno círculo político seria uma tentativa de um segundo termo para o Bandeirantes, uma saída difícil, já que o vice-governador paulista, Rodrigo Garcia, foi instado a trocar o DEM pelo PSDB justamente para concorrer ao Bandeirantes em 2022, fechando o caminho no partido para o ex-governador Geraldo Alckmin. A virada de casaca de Garcia gerou atrito com ACM Neto, presidente do DEM, e afastou a sigla, ao menos por ora, de uma composição nacional com o PSDB. ACM usou palavras fortes para atacar Doria no mesmo dia da filiação de Garcia. “A postura desagregadora do governador de São Paulo amplia o seu isolamento político e reforça a percepção do seu despreparo para liderar um projeto nacional”, escreveu em seu Twitter. “O momento pede grandeza e compromisso dos homens públicos com o país.”</p><p>Em resposta, Doria disse a PODER que o “DEM não está fora do jogo” e que “grandeza tem de ser de todos”. “Para vencer os extremos, teremos de ter capacidade de diálogo. Tudo a seu tempo deverá se ajustar para termos uma candidatura fortalecida de centro que terá um enfrentamento difícil com Lula e Bolsonaro.” O caminho promete ser duro para Doria. </p><p>A UNÇÃO DE FHC</p><p>A foto que abalou o PSDB em 21 de maio, o aperto de mão pandêmico entre Lula e FHC na casa de Nelson Jobim, e a declaração do ex-presidente de que apoiaria Lula caso seja ele o candidato a enfrentar Bolsonaro no segundo turno em 2022, gerou barulho no partido, e FHC teve de emendar seu posicionamento. Ele, que já havia admitido que o PSDB poderia abrir mão da candidatura majoritária diante da necessidade de encontrar um nome consensual de centro, disse a PODER, por e-mail, que “um partido do tamanho do PSDB precisa ter candidato presidencial, e deve ser um bom candidato”. João Doria, para ele, “tem acumulado serviços positivos à frente de São Paulo e isso contará para sua eventual candidatura”. FHC não comunga com a tese de ACM Neto e vê em Doria alguém “capaz de agregar”. O governador foi rápido em tentar cabalar o apoio de FHC, chamando- -o para uma visita ao Bandeirantes poucos dias depois da foto polêmica vir a público. O ex-presidente, a propósito, parece ter gostado de ser cortejado, e também, segundo revelou o jornal Folha de S.Paulo, conversou com o governador gaúcho Eduardo Leite, virtual adversário de Doria dentro do PSDB. Embora os círculos dos dois governadores dissessem que FHC apoiava os dois modelos de prévias propostos por ambos adversários, em 31 de maio o partido aprovou um documento que, se referendado, define o sistema com pesos desiguais, diferentemente do que queria Doria.</p><p>O REALIZADOR</p><p>“O grande paradoxo é que João Doria faz um bom governo, especialmente em saúde e educação, mas ele não constrói aliados políticos, e isso é fundamental para ganhar uma eleição”, disse a PODER o cientista político Fernando Abrucio, para quem o governador corre sérios riscos até numa disputa pelo Bandeirantes, caso enfrente o ex-governador Geraldo Alckmin. Para Abrucio, Doria será “lembrado daqui a dez anos” como o “cara que conseguiu fazer Jair Bolsonaro comprar vacina”. “Imagina quantas mortes mais seriam?” O governador vem atuando em diversas frentes, tendo recentemente sancionado o Bolsa do Povo, com recursos de R$ 1 bi, e que vão beneficiar até 500 mil pessoas, segundo o governo estadual, algumas recebendo cerca de R$ 500; em outra frente, segue a buscar investimentos para o estado, e em maio anunciou aporte de R$ 4 bi da empresa Mercado Livre. É o maior investimento privado num único ano em São Paulo, com possível abertura de 5 mil postos de trabalho. Boa parte da capacidade de geração de recursos, segundo o governador, está atrelada à reforma administrativa “difícil” feita em 2020, aprovada na Assembleia Legislativa após dura negociação – e que previa cortes que caíram, como a da verba da Fapesp, de incentivo à pesquisa científica. Com tudo isso, São Paulo cresceu 0,4% ano passado, segundo dados do estado, contra a queda de 4.1% do PIB brasileiro. Na última semana de maio, Doria voltou a falar sobre a Fapesp, dessa vez para anunciar um aporte de R$ 580 milhões para a fundação.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEigIH7y2cagNgyaFEYEKf9wX_O9zmbvjodepcXOm3-TS0pmXya0I9vYBMOZLjiYxxMvRY3LxyJmT_wfwj2qqZ1qdze6DSCKTALQS0wXc1nfjoUVcHaq78Y3SPKQCR3WIRjg47Sg/s900/Joao-Doria.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="520" data-original-width="900" height="370" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEigIH7y2cagNgyaFEYEKf9wX_O9zmbvjodepcXOm3-TS0pmXya0I9vYBMOZLjiYxxMvRY3LxyJmT_wfwj2qqZ1qdze6DSCKTALQS0wXc1nfjoUVcHaq78Y3SPKQCR3WIRjg47Sg/w640-h370/Joao-Doria.png" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-34161585368896546342021-06-13T20:05:00.004-03:002021-06-13T20:05:32.757-03:00 Em Amonita, a notável Kate Winslet como uma pioneira da paleontologia<p>Em 1811, aos 12 anos, a inglesa Mary Anning desencavou nas escarpas da cidade de Lyme Regis, na hoje chamada “Costa Jurássica”, no condado de Dorset, um esqueleto de 5,2 metros que mais tarde se descobriu datar de cerca de 200 milhões de anos e pertencer a um ictiossauro — o primeiro do gênero a ser estudado e hoje um dos destaques do Museu de História Natural de Londres. Aos 24, Mary, a personagem verídica que Kate Winslet interpreta em Amonita (Ammonite, Inglaterra/Estados Unidos/Austrália, 2020), fez outro achado de imensa importância: o primeiro fóssil completo de um plesiossauro, tão exótico que por algum tempo pensou-se ser uma fraude. Com técnica irretocável, Mary retirou ainda das encostas um dos primeiros pterossauros achados no mundo, entre centenas de outros fósseis que ainda pequena aprendera a coletar e que aos 11, com a morte do pai, passou a vender para turistas para ganhar algum dinheiro, escreve Isabela Boscov na Veja desta semana. Continua a seguir.</p><p><br /></p><p>Na loteria do azar, Mary tirara uma trifecta: era paupérrima, de classe baixa e mulher, em um tempo em que qualquer uma das três coisas já bastaria para conferir a ela uma desvantagem insuperável. Sua vida, além disso, foi cercada de infelicidade: além da perda prematura do pai e, com ela, do sustento, oito de seus nove irmãos não sobreviveram à infância. E, claro, ela própria morreu — aos 47, de câncer de mama — sem receber nem as recompensas nem o reconhecimento devidos. Mas Amonita, que está disponível para aluguel em streaming, imagina para ela um intervalo de radiância: o romance inesperado com Charlotte (Saoirse Ronan), deixada aos seus cuidados pelo marido, o naturalista Roderick Murchison (James McArdle), depois de perder um bebê.</p><p>Mary de fato tornou-se amiga dos Murchison e muitas vezes se hospedou com eles em Londres, mas de sua vida amorosa, se é que a teve, nada se sabe. Sabe-se, porém, que ela era uma pessoa defensiva — motivos não lhe faltavam —, arredia e sem traquejo social. Ao dar a ela uma paixão, o diretor e roteirista Francis Lee ilumina a perseverança, o brilhantismo e o desgaste físico com que a autodidata Mary se dedicou à paleontologia e, ao mesmo tempo, coloca em uma perspectiva terrivelmente inteligível o ambiente de adversidade emocional então reservado às mulheres, ricas ou pobres. Esse duplo aspecto está já no título, que designa o tipo mais comum de fóssil da Costa Jurássica, o de um molusco que vivia no interior de sua concha em espiral. “Para mim, essa foi a parte mais interessante de interpretar Mary, essa solidão, esse desejo de ser amada e não saber como sê-lo”, disse Kate Winslet a VEJA.</p><p>Amonita segue um naturalismo e uma tragicidade áspera que lembram muito o do nativo mais conhecido de Dorset — o romancista Thomas Hardy, de Tess of the d’Urbervilles e Jude, o Obscuro. Filmando quase sem iluminação artificial, na lama das encostas e nas praias batidas pelo vento e pela água, o diretor e a atriz decidiram que sua versão de Mary seria construída literalmente a partir do chão: “Cavei até as mãos ficarem cheias de cortes e marcas e entranhadas do tipo de sujeira que, por mais que se esfregue, não sai por completo. Ajudou muito, porque nunca tinha atuado tanto com as mãos, as costas, a nuca, e estava nervosíssima”, diz Kate. Muito mais fáceis, ela diz, foram as cenas de sexo: “Saoirse e eu somos amigas e cuidamos uma da outra. E adorei não ter de esconder que estou nos meus 40, não tenho o corpo dos 23 e essa é quem sou agora”. O resultado é mais uma bela e notável performance da atriz.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiNnJSBlp5DAPJj8JnrSn0yQecAybYZQTLVqSx1Tx5RdLp64CFXAOlnbE3ccEw6pt2Vem5v9wulWMsgJaBiYk26Cynav0nv1igBEZ8c3gn1S79mQ7BWYP1sTzbU33_7w5575R0P/s680/FILME-THE-MAURITIAN-02.jpg.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="453" data-original-width="680" height="426" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiNnJSBlp5DAPJj8JnrSn0yQecAybYZQTLVqSx1Tx5RdLp64CFXAOlnbE3ccEw6pt2Vem5v9wulWMsgJaBiYk26Cynav0nv1igBEZ8c3gn1S79mQ7BWYP1sTzbU33_7w5575R0P/w640-h426/FILME-THE-MAURITIAN-02.jpg.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-67570971518340371942021-06-13T19:56:00.004-03:002021-06-13T19:56:46.835-03:00 Jovem grávida morta em tiroteio no Lins sonhava ser a 'Gisele Bündchen carioca'<p>Foi às 18h53m, do dia dia 3 de outubro de 1996, uma quinta-feira, que nasceu, no Hospital do Andaraí, no bairro de mesmo nome na Zona Norte do Rio, a pequena Kathlen de Oliveira Romeu, filha única da administradora Jackeline de Oliveira Lopes, que, à época, tinha 15 anos, e de Luciano Gonçalves. Horas após o nascimento da bebezinha, os pais e avós a levaram para uma casa na comunidade do Lins de Vasconcelos, também na Zona Norte. Os anos foram passando e, quando Kethlen completou 6, foi colocada pelos pais na Escola municipal Bento Ribeiro, no Méier, bairro vizinho. Lá ela cursou até o 8º ano do ensino fundamental. Em seguida, a menina foi transferida para o Colégio estadual Visconde de Cairu, também no Méier, onde fez o ensino médio. Muito dedicada aos estudos, Kathlen decidiu que iria entrar para a faculdade. Em 2017, logo após completar 19 anos, ela se matriculou no curdo de Design de Interiores na Universidade Estácio de Sá, na unidade da Praça XI, no Centro do Rio, escreve Rafael Nascimento de Souza na revista Época desta semana. Continua a seguir.</p><p><br /></p><p>Após completar a maioridade, Kathlen conseguiu um emprego em uma loja de roupas, em Ipanema, na Zona Sul. A rotina da jovem era trabalhar durante o dia para pagar as contas e à noite seguir para a faculdade. Em outubro de 2020 ela se formou.</p><p>No tempo livre, Kathlen fazia fotos para agências de modelos. Ainda quando criança ela fez um curso de modelo, no Cachambi, na Zona Norte. Seu sonho era ser a "Gisele Bündchen carioca". Nas redes sociais é possível ver seus ensaios. Ao longo dos anos, Kathlen fez vários trabalhos para lojas de biquínis.</p><p>Há pouco menos de três anos a jovem conheceu o designer gráfico Marcelo Ramos, com quem passou a dividir a vida. Eles eram colegas de faculdade quando se conheceram.</p><p>Há cerca de um mês e meio, os pais da jovem, para dar mais conforto para a família, decidiram sair do Lins e foram morar no Engenho Novo, vizinho da comunidade. Dias depois, Kathlen descobriu que estava grávida. Num primeiro momento, a família ficou preocupada, mas logo a alegria tomou conta de todos.</p><p>Durante os dias em que morou no Engenho Novo, Kathlen não deixou de ter contato com a avó materna, a aposentada Saionara Fátima Queiroz de Oliveira. Nesta terça-feira, a jovem foi à comunidade do Lins. Encontrou a avó e iria almoçar na casa de uma tia que mora na favela. Mas não conseguiu chegar: Kathlen acabou sendo atingida por uma bala perdida durante um confronto entre policiais militares e bandidos e morreu, aos 24 anos.</p><p>— Eu podia ter morrido, ela não. Ela era linda, maravilhosa, tinha uma luz que eu não sei mensurar. A minha filha era grande fisicamente e espiritualmente. Ela foi lá para visitar a avó. Há um mês e 15 dias havíamos saindo de lá. Queríamos ter uma vida mais digna e mais tranquila. Mas tudo foi muito rápido. Mudamos, ela descobriu que estava grávida e foi assassinada. Os PMs são treinados. Se eles vissem alguém passando na rua, que parassem (de atirar). Os bandidos correram e não revidaram. A minha mãe disse isso. Toda vez é isso — disse Jackeline, quando esteve no Instituto Médico-Legal (IML) para liberar o corpo de Kathlen.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhgsGbf32YiSEXXZq1Fz5z7U-7ozG_VAN7V2v2oxonyTimx8yZ19prcT0KukXFooM6gAeFWTtINGT8cv7EQvOWOHg61XUAIuXuN-NTujYG43v-1OFVF2XF0IWGUpoRLj7c_RKeV/s1086/xkathlen6.jpg.pagespeed.ic.LctOKm9cNK.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="652" data-original-width="1086" height="384" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhgsGbf32YiSEXXZq1Fz5z7U-7ozG_VAN7V2v2oxonyTimx8yZ19prcT0KukXFooM6gAeFWTtINGT8cv7EQvOWOHg61XUAIuXuN-NTujYG43v-1OFVF2XF0IWGUpoRLj7c_RKeV/w640-h384/xkathlen6.jpg.pagespeed.ic.LctOKm9cNK.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-23198109.post-2782906044763511212021-06-13T19:34:00.004-03:002021-06-13T19:34:34.581-03:00 Leonora Carrington e surrealistas ganham uma nova casa no Brasil<p>Existe uma relação entre vida e poesia, um nexo mágico entre a “realidade” e um mundo outro, preconizavam os surrealistas e André Breton com sua noção de “acaso objetivo”. Assim, não é de estranhar que Leonora Carrington, artista mítica que desperta há décadas a imaginação de sonhadores mundo afora, tenha sua produção literária apenas agora lançada em livro no Brasil — em dose dupla —, após décadas de uma intensa produção admirada como um segredo sussurado entre poucos iniciados. O primeiro é “Lá embaixo” (trad. Alexandre Barbosa de Souza, 96 págs., R$ 45), relato em primeira pessoa de Leonora durante sua estada no território desintegrador da paranoia em um hospício, que marca a estreia da 100/cabeças, editora voltada a produções surrealistas inéditas no país ou fora de catálogo. Quase ao mesmo tempo, “Um conto de fadas mexicano e outras histórias” (Iluminuras, trad. Dirce Waltrick do Amarante, 144 págs., R$ 49) reúne pela primeira vez em edição brasileira histórias que mostram por que Leonora, morta aos 94 anos em 2011, é um nome ainda a ser descoberto para além do mundo das artes plásticas, escreve Bruno Yutaka Saito no Valor, em texto publicado dia 11/6. Continua abaixo.</p><p><br /></p><p>Neste momento de questionamento do patriarcado, que vem destacando o pioneirismo de mulheres no abstracionismo (Hilma af Klint), na Nouvelle Vague (Agnes Vardà) etc., Leonora apenas há alguns anos começou a ser notada fora do México, país onde é um patrimônio cultural e viveu durante quase 70 anos.</p><p>Há dois museus dedicados à artista em atividade no país, além de sua casa, na Cidade do México, que recentemente foi doado pela sua família para se transformar num espaço cultural. Nesta semana, também foi anunciado que um livro infantil de Leonora é a inspiração para o título da 59ª Bienal de Veneza, “The Milk of Dreams” (O Leite dos Sonhos), que vai ocorrer entre 23 de abril e 27 de novembro de 2022.</p><p>Coordenador da 100/cabeças, Alex Januário identifica esse movimento, mas afirma que o lançamento não foi uma estratégia de mercado. “Se tem uma coisa que rege o surrealismo é o ‘acaso objetivo’. Esses títulos que estamos lançando surgiram de diálogos e conversas do nosso grupo. No caso da Leonora, a escolha foi antes dessa retomada. Pelo contrário, nem procuramos nomes de cunho mais comercial”, diz Januário, que atua no movimento surrealista internacional com o grupo deCollage desde o fim dos anos 1990.</p><p>Por meio da 100/cabeças, estão sendo lançados autores de primeira grandeza, como Antonin Artaud (“Carta à vidente”), René Crevel (“A morte difícil”), Mina Loy (“Escritura estilhaçada”) e Michael Löwy (“O cometa incandescente”), cada um com uma tiragem de mil exemplares.</p><p>Nascida em 1917 em Lancashire, na Inglaterra, Leonora Carrington era a única filha mulher de um casal de novos ricos de raízes irlandesas, que fazia fortuna com a indústria têxtil. Dela, não era esperado nada mais do que o casamento com algum homem da alta sociedade. No entanto, desde muito cedo Leonora demonstrou uma rebeldia destoante.</p><p>O conto “A Debutante”, que está em “Um conto de fadas mexicano e outras histórias”, retrata em tom fabular esse enfado com as convenções. As influências de autores como Lewis Carroll e Jonathan Swift se mostram no esgarçamento de fronteiras do realismo. O aparente absurdo é apenas um normal possível, e a tradição gótica inglesa encontra uma seguidora sem pudores e de humor muito mórbido. No conto, a jovem narradora não está nem um pouco afim de ir ao seu baile e arma um plano com a amiga hiena. Disfarçado, o animal irá no lugar da narradora. Mas, para ficar mais parecida com um humano, a hiena mata a empregada e usa o seu rosto.</p><p>“Seus escritos bebem do nonsense vitoriano, do surrealismo, dos contos de fadas irlandeses, dos mitos mexicanos”, diz a tradutora do livro, Dirce Waltrick do Amarante, professora da Universidade Federal de Santa Catarina. “Ela trabalha com o inusitado, com o desconforto, trata de temas tabus, de temas violentos, mas dentro de uma atmosfera onírica. É um pesadelo do qual podemos acordar a qualquer momento.”</p><p>É assim em “A Casa do Medo”, o primeiro conto publicado de Leonora, em 1938, sua estreia na rede surrealista. Nele, a narradora se vê num jogo-ritual entre assustados e assustadores cavalos falantes.</p><p>Quando notaram que não apareciam pretendentes para Leonora, seus pais se renderam ao seu desejo, e assim, aos 20 anos, ela foi a Londres estudar arte. Era 1937, e as vanguardas artísticas estavam a pleno vapor. No surrealismo encontrou uma sensibilidade similar à sua. O movimento criado por André Breton e que tinha na produção plástica nomes como Salvador Dalí e Max Ernst questionava o que eram o real e o imaginário, situando uma verdade entre a vida de vigília e a vida onírica: amor, poesia e liberdade eram guias para atos de insubmissão perante diferentes tipos de opressão.</p><p>Numa festa, Leonora conheceu Ernst, 26 anos mais velho e casado. Nele, encontrou não apenas um mestre que ajudou a dinamizar seu imaginário, mas um companheiro de um amor louco, desfrutado numa idílica casa ao Sul da França, para onde foram após incomodar muita gente e onde viviam à base de criatividade e sonhos compartilhados. Seriam os melhores dias de sua vida, diria ela muitas décadas mais tarde.</p><p>Quando a Europa começava a ruir sob os nazistas, Leonora também entrou em pane. Quando Ernst, que constava no índex da arte “degenerada”, foi levado a um campo de concentração, ela sofreu um colapso mental. Sozinha em casa, por dias consumiu apenas água de laranjeira, na esperança de que sua tristeza passasse e a purificasse. Para ela, havia uma conexão entre seu estômago e o estômago sujo do mundo. Resgatada por um casal de amigos que logo perceberam que os nazistas destruiriam o que estivesse à frente, a artista estava tomada por uma crença absoluta na realidade de seu pensamento mágico, que conectava seu corpo aos destinos do mundo.</p><p>Em Madri, Leonora foi confiante à embaixada britânica para anunciar ao cônsul que ela era a chave para o fim da guerra. O conflito, disse, estava sendo travado hipnoticamente por Hitler e outras pessoas. Bastaria interromper esse transe para que o mundo fosse libertado.</p><p>Foi a senha para seu diagnóstico de loucura e a decisão de seus pais de interná-la em um hospício. O relato cru em primeira pessoa, que inclui cenas de pernas e braços de corpos humanos balançando na traseira de caminhões na estrada e seu estupro coletivo por soldados, é também um retrato de abusos e torturas de uma época pré-movimento antimanicomial.</p><p>“Lá embaixo” foi ditado por Leonora em 1943, três anos após sua internação, quando já estava estabelecida no México. A sua fala adquire um sentido terapêutico, como se fosse capaz de expurgar ou ao menos atenuar o trauma que alterou para sempre sua compreensão da realidade, um relato não muito distante da via psicanalítica.</p><p>“Começou uma nova era com o dia mais terrível e mais negro da minha vida”, disse Leonora. “Sinto uma angústia terrível, mas não posso continuar vivendo sozinha com essa lembrança....sei que assim que escrever, terei me livrado disso.” Era a primeira vez que ela recebia uma injeção de Cardiazol, um indutor de convulsão epiléptica usado antes dos eletrochoques.</p><p>Seja na sua produção pictórica, escultórica ou literária, Leonora coloca em primeiro plano essa fissura e intercomunicação entre planos da realidade, onde criaturas indecifráveis, figuras derivadas do folclore celta e das culturas pré-colombianas se inter-relacionam.</p><p>Naquele México dos anos 1930 a 1950, uma meca do imaginário da esquerda pré-Revolução Cubana para onde desembarcaram de exilados políticos a artistas como Trótski, Breton, Artaud, Luis Buñuel e Benjamin Péret, Leonora casou-se, teve dois filhos e deu margem à sua associação com o arquétipo de bruxa. Se Paris era uma festa, a Cidade do México era um sonho.</p><p>Tão sábia quanto misteriosa, ela fazia omeletes com pedaços de cabelo surrupiados de convidados, retomava a técnica medieval de uso de clara de ovo nas suas telas — elas pareciam brotar, fermentar, de um lugar de onde Leonora não explicava em palavras a pesquisadores e admiradores de sua obra. Com outras artistas europeias expatriadas, Remedios Varo e Kati Horna, criou uma espécie de sucursal feminina e mexicana do surrealismo. “Aquelas vagabundas europeias!” teria dito uma geniosa Frida Kahlo para desdenhar do grupo do qual não fazia parte.</p><p>O surrealismo, lembra Alex Januário, da 100/cabeças, não é apenas uma estética ou escola artística. “É um modo de vida, um movimento de emancipação do espírito do homem”, diz. Entre os próximos lançamentos da editora estão “Hebdomeros” (1929), uma rara incursão literária do italiano Giorgio de Chirico, artista da “pintura metafísica”, e uma nova edição de “Nadja” (1928), de André Breton, um dos livros mais queridos do surrealismo.</p><p>No dia 25, a 100/cabeças, em parceria com a Capivara Cultural, promove um encontro on-line gratuito via Zoom, das 19h30 às 21h30. É necessário realizar inscrição. O evento inclui aula com o professor Marcus Rogério Salgado, doutor em literatura comparada (UFRJ) e autor dos livros "A vida vertiginosa dos signos" e "A arqueologia do resíduo", e roda de conversa e leitura com a jornalista Juliana Vettore e o time da edições 100/cabeças: Maria Amelia Jannarelli, Alexandre Barbosa de Souza, Elvio Fernandes e Diogo Cardoso.</p><p>****</p><p>Leia a seguir entrevista com a tradutora e professora da Universidade Federal de Santa Catarina Dirce Waltrick do Amarante, que organizou o livro da editora Iluminuras, “Um conto de fadas mexicano e outras histórias”, com Nora M. Basurto Santos, PhD em Linguística Aplicada pela Universidade de Warwick, no Reino Unido.</p><p>Valor: Como foi o processo de seleção dos contos? O que a sra. buscou destacar dentro da produção de Leonora Carrington em “Um conto de fadas mexicano e outras histórias”?</p><p>Dirce Waltrick do Amarante: Eu e a Nora achamos que os primeiros contos escritos por Carrington deveriam entrar, pois eles fundamentaram o estilo adotado pela escrita. Além disso, alguns dos contos têm um traço autobiográfico bastante forte, como “A Debutante”, que conta a história de uma moça que não quer ir à sua festa de 15 anos, assim como a escritora não quis participar da dela. Esses contos foram escritos em francês, na época em que Carrington vivia na França com Max Ernst, que os ilustrou. Eles formam publicados em 1939. É interessante pensar que Carrington escreveu em três línguas: inglês, francês e espanhol. Então, ter pelo menos um conto de cada língua também foi uma opção nossa.</p><p>O México foi a terra escolhida por Carrington, ela mergulhou na cultura mexicana, como se pode perceber em “Um Conto de Fadas Mexicano”, de modo que era outro que não poderia faltar.</p><p>“Et in bellicus lunarim medicalis” entra numa questão política da Guerra Fria e das espionagens. Mostra que a escritora estava alerta para o seu entorno político.</p><p>“Jemima e o Lobo” é um conto terrível, que nos marcou a mim e a Nora, por isso entrou. Nesse processo de seleção, tivemos o cuidado de ter os contos na língua em que foram originariamente escritos, e eu os traduzi diretamente do francês, inglês e espanhol. A busca implicou um grande trabalho de pesquisa e rendeu muitos achados, que esperamos repartir logo mais com os leitores.</p><p>Valor: Por que Leonora ainda é pouco conhecida no Brasil?</p><p>Dirce: Carrington é muito conhecida como artista plástica. Assim o é também no Brasil. Como escritora, ela está vindo à tona somente agora, não apenas no Brasil, mas em outros países. A razão dessa “descoberta” tardia eu não sei explicar — talvez por ter feito uma obra plástica muito exuberante, que roubou a cena. Mas está na hora de conhecer essa outra faceta de uma artista extremamente criativa e plural.</p><p>Valor: Qual a avaliação que a sra. faz da produção literária de Leonora? Devemos enquadrá-la dentro da produção surrealista, ou se trata de uma autora com uma voz muito própria? Quais são os elementos que a tornam, a seu ver, uma grande autora?</p><p>Dirce: Ela é uma escritora extremamente criativa, tem voz própria, tem uma assinatura. Mas, é claro, seus escritos bebem do nonsense vitoriano, do surrealismo, dos contos de fadas irlandeses, dos mitos mexicanos... Ela trabalha com o inusitado, com o desconforto. Ela trata de temas tabus, de temas violentos, mas dentro de uma atmosfera onírica, é um pesadelo do qual podemos acordar a qualquer momento.</p><p>Valor: A sra. menciona no posfácio do livro futuros lançamentos de Leonora. Poderia comentar?</p><p>Dirce: Pretendemos, Nora e eu, publicar mais alguns títulos. Publicar os contos completos é a nossa meta mais imediata, a Iluminuras já aceitou a empreitada. Depois, tenho muita vontade de traduzir um conto dela para crianças, uma peça de teatro e um romance. Vamos ver. É preciso negociar direitos autorais, ainda mais com a nossa economia em colapso, isso se torna quase impossível. Traduzi dois contos de Eugène Ionesco para crianças (foram publicados pela Martins Editora), tenho os outros três traduzidos e prontos para publicação, mas tudo para nos direitos autorais. Mas quem trabalha com arte e literatura já está acostumado com isso, infelizmente.</p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEggN5hRdF3z6htdRWPPQtnf_qjall_ntT3zpSJQVeAocyA1USEyaCPlLNqhicXOUUbbJIUgF1AIidfnaHLLnR1SfitNkDp-xX0expMWPHf2aNVCDzUXfts1SwBmq5Q6XhBbtXSx/s984/foto11cul-101-bruno-d27.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="796" data-original-width="984" height="518" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEggN5hRdF3z6htdRWPPQtnf_qjall_ntT3zpSJQVeAocyA1USEyaCPlLNqhicXOUUbbJIUgF1AIidfnaHLLnR1SfitNkDp-xX0expMWPHf2aNVCDzUXfts1SwBmq5Q6XhBbtXSx/w640-h518/foto11cul-101-bruno-d27.jpg" width="640" /></a></div><br /><div><br /></div>Luiz Antonio Magalhãeshttp://www.blogger.com/profile/04650502123448146932noreply@blogger.com0